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Foto by Bulinha |
Cada ambiente tem a presença marcante do meu
pai, porque ele foi marcante mesmo. Se você
entrasse pela sala,
o que não era o hábito, ele estaria sentado na cadeira dura em frente
à TV. Na mesinha, um aperitivo enquanto uma partida de futebol de qualquer
campeonato passava na TV. Se você chegasse na sala da lareira, ele
estaria ali na escrivaninha: lendo, estudando, escrevendo sobre espiritismo ou colocando
a contabilidade em dia. Nos invernos dos últimos
anos, andaria embrulhado num poncho. A escrivaninha, que quando fiz 8 anos ele
me deu de presente de aniversário, ficava no canto dos janelões dando para o
jardim verde e florido e para a frente da casa, sem muros nem grades.
Poderia calhar de você chegar lá pelas 11h, daí ele já estaria na copa-cozinha, ampla e bem iluminada
pela telha transparente. Sentado à
mesa, lendo a ZH ou o Agora, beliscando e tomando um vinho tinto. Do outro
lado do balcão americano, alguém preparando a comida e cuidando da louça, na
pia grudada no balcão que tem as violetas da mana Júlia.
Foto by Tonio |
Se fosse domingo,
ele estaria atrás dessa porta entre a cozinha e a
churrasqueira. Desde cedo às voltas com as carnes – um tipo para cada filha, neto, genros e eventuais convidados. Ele
limpava, temperava e assava ao gosto de quem estivesse para o almoço. Servia um
por um, sem se sentar à mesa. Na hora da sobremesa (sempre obrigatória), sim, ele
vinha todo feliz, filosofar com a turma reunida.
Houve época em que era comum encontrá-lo na
garagem para três carros.
Lá, com a capota aberta
do Jeep antigo,
estaria fuxicando no motor ou dando carga na bateria. Senão, lavando o
Opala bege. Não gostava de carro zero, uma daquelas manias de português, que só
ele entendia. Assim como não gostava
de piscina: “pra que? Tem mar perto
e água parada cheia de química
não presta”.
Há alguns anos, era mais fácil encontrá-lo no quarto da parte térrea. Uma suíte que foi construída
quando a mãe teve problemas de coração. Ele não gostava de ficar deitado como
um velho, mas chegou um tempo e um momento em que não foi mais possível evitar. Nesse quarto amplo, com janelão para o mesmo
jardim verde e florido, eles mantiveram os móveis da década de 70. Foi construído
em cima de um algibre, transformado em adega pelo pai, e que só os netos (pelo
tamanho, vale dizer) podiam descer pela escadinha de três degraus de madeira,
carregando um fio com uma lâmpada
na ponta. Desciam aparentando não ter medo do escuro, da umidade, da escada bamba ou
da luz trêmula.
Se você tivesse nos visitado nos Natais das
décadas de 80 ou 90, teria sentado
na mesa da sala de jantar. Éramos a única família que ceava às 8 da noite e
abria os presentes às 10 – porque o pai sentia fome cedo e sono, idem. Ele adorava
reunir todo mundo. Era engraçado ver ele dançando
sozinho no meio da sala, sorrisão aberto, uma mão na barriga, o outro braço bem aberto,
o corpo girando,
com os pés arrastando um bolero.
Uma escada de madeira levava para a parte de cima: os quartos, os banheiros, um semi-mezanino e o famoso
corrimão do corredor. Ali, pendurávamos todas as toalhas de banho e de
praia – para desespero do senso estético da mãe e deleite do pai por ter a casa
habitada, com vida. Essa escada ganhou
um carpete verde no meio dos degraus
por conta de um tombo. Meu cunhado, ao descer
as escadas com o Mateus
ainda bebê no colo, resvalou
e caiu.
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Foto by Bulinha |
Dizem que o que mais encanta na casa é o jardim
exuberante, os plátanos de 35 anos, a glicínia, os brincos de princesa,
o eucalipto e o coqueiro. Dizem que quando você chega na varanda e bate o sino,
já sente o bom astral e o acolhimento, oferecido pela casa. Outros gostam dos
quadros e da madeira rústica.
Na verdade, eu acredito que todos que chegaram
à casa, vinham em busca da companhia dele.
Hoje, aos meus olhos, os jardins secaram, o
sino empenou, o vinho secou, o carvão virou cinza, a adega alagou. Não há
natais, nem churrascos, nem dancinhas engraçadas, nem tango ou bolero no
gramofone, nem filosofia boa à mesa, o cheiro de old spice evaporou. Mas, se você fechar os olhos, bem apertadinho,
pode sentir a presença, o cheiro, o abraço e o amor incondicional dele.
Alison Guedes Altmayer
21/07/2016