sexta-feira, 25 de agosto de 2017

A casa da gente


Foto by Bulinha
Meu pai dizia que a casa da gente é para ser usufruída, habitada. Cinco anos depois que se aposentou, ele reuniu as filhas e minha mãe para perguntar o que achávamos de ir morar no Cassino. Eu não achava nada, tinha 9 anos e não fazia ideia do que seria morar na praia o ano todo. Para lá nos mudamos em novembro de 1976 – uma casa de tijolo à vista caiado em baixo e madeira em cima, com janelas lembrando as casas da serra.

Cada ambiente tem a presença marcante do meu pai, porque ele foi marcante mesmo. Se você entrasse pela sala, o que não era o hábito, ele estaria sentado na cadeira dura em frente à TV. Na mesinha, um aperitivo enquanto uma partida de futebol de qualquer campeonato passava na TV. Se você chegasse na sala da lareira, ele estaria ali na escrivaninha: lendo, estudando, escrevendo sobre espiritismo ou colocando a contabilidade em dia. Nos invernos dos últimos anos, andaria embrulhado num poncho. A escrivaninha, que quando fiz 8 anos ele me deu de presente de aniversário, ficava no canto dos janelões dando para o jardim verde e florido e para a frente da casa, sem muros nem grades.
     
Poderia calhar de você chegar lá pelas 11h, daí ele já estaria na copa-cozinha, ampla e bem iluminada pela telha transparente. Sentado à mesa, lendo a ZH ou o Agora, beliscando e tomando um vinho tinto. Do outro lado do balcão americano, alguém preparando a comida e cuidando da louça, na pia grudada no balcão que tem as violetas da mana Júlia.

Foto by Tonio
      

Se fosse domingo, ele estaria atrás dessa porta entre a cozinha e a churrasqueira. Desde cedo às voltas com as carnes um tipo para cada filha, neto, genros e eventuais convidados. Ele limpava, temperava e assava ao gosto de quem estivesse para o almoço. Servia um por um, sem se sentar à mesa. Na hora da sobremesa (sempre obrigatória), sim, ele vinha todo feliz, filosofar com a turma reunida.

      




Houve época em que era comum encontrá-lo na garagem para três carros. Lá, com a capota aberta do Jeep antigo, estaria fuxicando no motor ou dando carga na bateria. Senão, lavando o Opala bege. Não gostava de carro zero, uma daquelas manias de português, que só ele entendia. Assim como não gostava de piscina: “pra que? Tem mar perto e água parada cheia de química não presta”.

Há alguns anos, era mais fácil encontrá-lo no quarto da parte térrea. Uma suíte que foi construída quando a mãe teve problemas de coração. Ele não gostava de ficar deitado como um velho, mas chegou um tempo e um momento em que não foi mais possível evitar. Nesse quarto amplo, com janelão para o mesmo jardim verde e florido, eles mantiveram os móveis da década de 70. Foi construído em cima de um algibre, transformado em adega pelo pai, e que só os netos (pelo tamanho, vale dizer) podiam descer pela escadinha de três degraus de madeira, carregando um fio com uma lâmpada na ponta. Desciam aparentando não ter medo do escuro, da umidade, da escada bamba ou da luz trêmula.

Se você tivesse nos visitado nos Natais das décadas de 80 ou 90, teria sentado na mesa da sala de jantar. Éramos a única família que ceava às 8 da noite e abria os presentes às 10 – porque o pai sentia fome cedo e sono, idem. Ele adorava reunir todo mundo. Era engraçado ver ele dançando sozinho no meio da sala, sorrisão aberto, uma mão na barriga, o outro braço bem aberto, o corpo girando, com os pés arrastando um bolero.

Uma escada de madeira levava para a parte de cima: os quartos, os banheiros, um semi-mezanino e o famoso corrimão do corredor. Ali, pendurávamos todas as toalhas de banho e de praia – para desespero do senso estético da mãe e deleite do pai por ter a casa habitada, com vida. Essa escada ganhou um carpete verde no meio dos degraus por conta de um tombo. Meu cunhado, ao descer as escadas com o Mateus ainda bebê no colo, resvalou e caiu.

     
Foto by Bulinha

Dizem que o que mais encanta na casa é o jardim exuberante, os plátanos de 35 anos, a glicínia, os brincos de princesa, o eucalipto e o coqueiro. Dizem que quando você chega na varanda e bate o sino, já sente o bom astral e o acolhimento, oferecido pela casa. Outros gostam dos quadros e da madeira rústica.

Na verdade, eu acredito que todos que chegaram à casa, vinham em busca da companhia dele.
Hoje, aos meus olhos, os jardins secaram, o sino empenou, o vinho secou, o carvão virou cinza, a adega alagou. Não há natais, nem churrascos, nem dancinhas engraçadas, nem tango ou bolero no gramofone, nem filosofia boa à mesa, o cheiro de old spice evaporou. Mas, se você fechar os olhos, bem apertadinho, pode sentir a presença, o cheiro, o abraço e o amor incondicional dele.

Alison Guedes Altmayer
21/07/2016

domingo, 20 de agosto de 2017

O encontro da Alegria com a Tristeza.

O encontro da Alegria com a Tristeza.
                                      José Antonio Altmayer
                   (história de João e Maria)
Neste texto, tanta Alegria como Tristeza são denominações geográficas e não estado de espírito. Refiro-me à praia da Alegria e à da Tristeza.
Estão localizadas frente a frente, separadas por um lençol de água imenso, ficando a Alegria em Guaíba e a Tristeza em Porto Alegre. São bairros destas cidades, com praias sobre o rio. Pois bem, na Tristeza vivia o João e na Alegria vivia a Maria. Cada um deles numa chácara cheia de irmãos e árvores frutíferas, belas flores e orquídeas diversas.
A casa do João ficava no alto do morro, de onde desde cedo ele sonhava cruzar o rio e alcançar a outra margem, curiosidade de guri e espírito de aventura.
A de Maria era mais afastada, porém por caminhos abertos na mata densa ela alcançava uma pedra enorme, já dentro do rio. E de lá, também desde cedo, lançava olhares para o outro lado, olhares de criança curiosa e mais tarde de menina-moça sonhadora.
João, dotado de espírito prático e empreendedor, construiu um pequeno barco a remo, que depois foi dotado de uma vela e começou a navegar pelas águas nem sempre calmas do Guaíba. E o olhar sempre na outra margem, atraído pelo desafio de cruzar aquilo que em sua imaginação era um oceano e do outro lado descobrir novas terras.
Enquanto isso Maria, sentada na pedra sobre o rio, contemplava as águas e imaginava um príncipe chegando numa linda caravela e a convidando para partirem numa longa viagem.
Chegou o dia em que João decidiu que era a hora de cruzar o rio. Já adquirira muita prática no manejo de seu tosco barco, era jovem, forte, belo e destemido e suas horas de folga, (estudava medicina), eram dedicadas sempre ao barco e ao rio. Num domingo de céu azul e vento calmo logo após a missa, desceu a encosta da chácara e fez-se ao mar, um mar de água doce e amarelada, mesmo assim o seu mar.
De cima da pedra Maria viu que uma vela branca se aproximava, pequeno barco entre tantos que já vira por aqueles lados. No entanto seu coração bateu diferente naquele dia e ao olhar o barquinho enxergou uma caravela e ao leme um príncipe.
João conduziu sua embarcação com perícia até junto à praia. Havia divisado sobre aquela pedra uma bela jovem, de cabelos ao vento e também seu coração bateu diferente.
Olharam-se de longe, coraram cada um de seu canto, e sem ao menos um aceno voltaram para suas casas.Mas havia acontecido o primeiro dos tantos contatos que se seguiriam.
Durante a semana Maria contava os minutos para que chegasse o domingo seguinte, tal era sua certeza de que seu príncipe voltaria. E João perdera o sono, numa semana febril de preparativos para a velejada do reencontro. Tinha também ele a certeza que a bela sobre a pedra estaria lá, cabelos aos ventos e sorrindo. E assim foi. Desta vez além de se olharem, trocaram também algumas palavras, o suficiente para que um soubesse o nome do outro. E desta forma os sonhos da semana teriam nomes próprios. E os encontros se seguiram, ela ansiosa sobre a pedra e ele soprando a vela para que fosse mais rápida a travessia. Agora as conversas se prolongavam, as mãos se tocavam de leve e a hora da despedida já permitia um breve beijo. Este beijo selou o encontro entre a Alegria e a Tristeza.
João e Maria casaram em 1941, num ano em que o rio que os unira trasbordou de alegria, na maior enchente do século passado. Vieram morar em Rio Grande, pois João se apaixonara pela geografia da região, numa viagem que fizera de barco alguns anos antes.
 Chegaram no Jenny Naval, navio que fazia a ligação de Porto Alegre com Rio Grande. E por aqui navegaram muitos anos juntos.Tiveram quatro filhos, nove netos e nove bisnetos. João partiu mais cedo.Maria ficou até que no dia 2  de fevereiro  de 2004, o João veio buscá-la  novamente, numa caravela de nuvens, significativamente no dia de N.S. dos Navegantes.
Assim, de uma maneira sucinta, faço o resumo de uma grande história de amor, da qual sou fruto e disso muito me orgulho.
João era na verdade João Hugo e Maria era Lourdes Maria, que unidos na alegria e na tristeza, viveram um grande amor até que a morte os separou e por fim tornou a reuni-los.



sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A Portuguesa, por Eliane Macedo [Fragmento]


Vim da Europa de navio, num compartimento bem fechado, junto com toda família, em cima escrito “Frágil”. A viagem foi longa, muitos dias tenebrosos. O vento balançava a embarcação, sacolejando as caixas empilhadas no porão. Com a perspectiva de uma vida diferente, saímos da fábrica para o mundo. O navio chegou no Porto de Santos, a caixa foi retirada pela estiva, colocada num caminhão e levada ao depósito de louças Novo Mundo, onde seria encaminhada para um loja no sul do Sul. Naquele pequeno shopping, a caixa foi aberta e a família disposta na vitrine com delicadeza. Respirei fundo. Uma sensação de liberdade ao olhar para fora e ver as pessoas sorrindo, falando alto, em português, as luzes dos letreiros das lojas, as crianças correndo, escapando da mãe ou do pai.  

         Foto:
 Eliane Macedo

Quer saber o resto da história? 
Está no livro Histórias de Vento, Mar e Amor.


segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Não entre em pânico!

Não entre em pânico!



Ih, lá vem aquele guri esquisito. De novo. A cada dois dias ele aparece pontualmente na mesma hora – 17h45 – quinze minutos exatos da volta do meu intervalo.
Ele tem um cabelo castanho, cacheado e curto. Geralmente veste camisas com estampa florida ou marítima. Nunca está de calça – sempre uma bermuda bege ou marrom. Usando um chinelo, vem a padaria comprar sete cacetinhos. Nunca oito ou seis. Sempre sete.
Um dia ele se apresentou para mim e disse que seu nome era Michael. Ou Moisés. Ou Mateus. Whatever. Abrindo um parêntese enquanto ele aguarda na fila: toda vez que conheço alguns rapazes, em curto espaço de tempo, acabo confundindo fisionomias e nomes. Fazer o quê, sou ruim de memória mesmo. Enfim.
Outra coisa curiosa é que todas as sextas ele faz um comentário sobre o fim de semana e a semana que passou. Diz coisas como “choveu muito essa semana” ou “está quente hoje, não”.
Trocamos um “boa tarde” e vou pegar os pães – parei de perguntar o que ele deseja há muito tempo pois nunca quer nada diferente de sete cacetinhos. Sempre os mais moreninhos e nunca da última fornada – “É o meu TOC”, disse ele uma vez, mesmo sem eu lhe perguntar. Estou pesando e me dou conta que algo novo está acontecendo. Ele simplesmente não falou nada. Ainda. Não falou da semana calorenta e nem do verão desértico da tarde de hoje. Meu deus será que aconteceu alguma coisa? Ele segue me olhando, com aquele meio sorriso escondido na barba sempre por fazer.
Esse silêncio quase tumular me obriga tomar uma atitude:
- Calor, hoje, hein? Mas pela semana que foi, nada diferente, não é? E no “findi”, qual será?
Ih, o guri congelou. O meio sorriso desapareceu e o olhou estalou.
------------------------------------------------------------------------------------------       
Todos os dias eu fico da janela do apartamento cuidando aquela bela atendente da padaria. Ela é filha do dono, seu Manoel, português de carteirinha, afinal, é uma padaria.
Da mesma janela vejo que ela tem uma rotina, todos os dias, durante seu intervalo: em frente a padaria, se ajeita numa cadeira, onde come um doce (ou salgado) e toma um café. Com um binóculo consigo acompanhar os livros que ela lê. Já vi Neruda, Drumonnd, Cecília Meireles e Machado de Assis.
Espero dar quinze minutos do retorno dela do intervalo e vou até a padaria comprar pão. A fila está grande. O dia está muito quente e a semana foi muito pior. Manoela está bonita como sempre. Combinando com o esmalte das unhas ela está usa batom cor-de-rosa. Os óculos não escondem os olhos castanhos esverdeados. Os belos lábios são responsáveis por um encantador sorriso. O cabelo, quase loiro, é lindo, liso e longo.
Adoro ser atendido por ela. Completa meu dia.
Quando chega a minha vez, não preciso pedir, pois ela sabe o meu desejo. Ela pega com suas mãos suaves os sete cacetinhos moreninhos que eu levo a cada dois dias.
Mas hoje eu vou fazer diferente: não irei falar nenhuma bobagem e irei convidar ela para sair no fim de semana. Porém o nervosismo está tomando conta de mim. Sinto que minha garganta está seca e meus olhos não deixam de acompanhar os movimentos dela atrás do balcão. Agora, ela já pesou os pães e está me olhando. Minha barba está coçando.
De repente ela quebra o silêncio:     
- Calor, hoje, hein? Mas pela semana que foi, nada diferente, não é? E no “findi”, qual será?

Meu deus, e agora?

 - Passeio, domingo, no parque, pode ser?

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Solar ou um conto de vingança. [Um pequeno trecho]

[...] Na mata, próximo à Lagoa, ele manda me deitar enquanto se afasta para dar uma mijada. Encontro minhas coisas escondidas e troco de roupa – a mijada é longa – e já em posse de meu facão, aproveito a cena para capá-lo. Com as mãos em sangue, Salomão grita “Puta, Puta”. Ajoelhado, de orelha a orelha, lhe abro um rasgo na garganta como uma ovelha sendo carneada. Ao fim, o corpo de Salomão jazia em uma poça de sangue. O sol está nascendo na Lagoa. O Nordestão está assobiando, é o vento do verão. O coração agora chora. É ano-novo.