sábado, 7 de outubro de 2017

A fazenda



Na fazenda

Da vitrola sai um som rascante, chiado de 78 rpm. Vivaldi é o compositor, Deutsch Gramophone é a etiqueta. No embalo da cadeira de balanço, ela se enrola numa manta grossa e pede ao filho que coloque mais uma tora de eucalipto na lareira. O vinho de Bento e alguns pinhões fumegantes ajudam a aquecer. Um neto desenha no vidro embaçado e espia o capim congelado do lado de fora. Ali na entrada o cabide está pesado com ponchos e gorros. A conversa gira em torno da compra de sementes, do preço astronômico dos insumos e sobre a cachaça com butiá que ainda não está bem curtida. Da cozinha vem o cheiro da chimia fervendo no tacho de cobre e do pão caseiro aprontando no forno de barro. O calendário do Sagrado Coração diz que é o último dia, mas o frio parece querer ficar. A nora e os netos menores já subiram, cada qual com sua botija de água quente para aquecer o início da noite na cama gelada.

Na manhã seguinte o sol nasce levantando fumaça de geada dos campos. Até o meio da manhã uma cerração leve e depois o céu azul e um pouco de vento. Os álamos margeando o caminho até a porteira já estão brotados. As dunas da beira da praia floriram de amarelo, margaridas em profusão. As borboletas que até ontem eram meros casulos, hoje esvoaçam seu colorido. Dona Maria Leovegilda calça seus tamancos e vai alimentar as galinhas, suas queridinhas. Nem olha para a cadeira de balanço. Não lhe peçam galinha ao molho pardo, pois vira fera. O frio diminuiu muito mas não se pode dispensar um casaquinho leve, principalmente por causa da artrite. A Bendita, cadela misto de pastor com ovelheiro, deu cria essa noite. São mais oito cuscos para alimentar. Maria chama o neto mais velho e pede que anuncie os cachorrinhos nos vizinhos: serão doados para quem se interessar. O guri, meio contrariado, encilha o baio e se toca pelo campo. Na volta anuncia que pelo menos seis terão casa nova, quando desmamarem, não importa se machos ou fêmeas. Por sua vez ele elege um deles, o mais sapeca, para ser seu. A avó concorda.

Moleque, o cachorro de Felipe cresceu muito nesses quatro meses, e tem paixão por banho. O resto da ninhada foi distribuído, mas com freqüência se encontram todos no açude. Dias quentes e correrias por campos e matos juntam cães e guris na volta d água. Jangadas são improvisadas e grandes competições de natação são realizadas. O paraíso daqueles dias só é perturbado pela mosquitada do entardecer, quando fogueiras de eucalipto e bosta de vaca, seca, servem para espantar os insetos. E a noite chega sempre estrelada e com um coral de grilos. A coruja, moradora do telhado do celeiro, inicia sua faina noturna, mas os guris não percebem pois dormem empedrados depois de tanta atividade.


O caminho até a porteira está atapetado de folhas secas e a caminhada para pegar o ônibus escolar é crocante. Passa cedo o João do Bus, assim apelidado pela irreverência dos guris que reiniciam suas aulas. A escola é longe e nem sempre a professora consegue chegar, as estradas são terríveis e as chuvas de março não ajudam em nada.O João de barro termina sua casa, sempre com a porta protegida do nordeste, vento que predomina na região.D. Maria volta a tricotar pois os guris crescem e o pulôver do ano passado já não serve mais. E tem mantas de pescoço que necessitam uma reforma. O Luizão enche o depósito com lenha e os canos do aquecedor são revisados, a serpentina funcionando bem é vital para o conforto dos próximos meses. Foi tudo muito rápido e um novo ciclo inicia. Desta vez com a cachaça de butiá já bem maturada.

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