sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Tia Treva

Tem gente que anda como se quisesse sempre voltar para o ventre, ou nunca ter vindo para esse mundo.
A Tia Treva era assim.
Ela não tinha dentes.  O queixo dela era caído como se os ossos quisessem furar o chão e enterrar a Tia Treva no fundo do barro. Para nunca mais sair. Tinha seios enormes. Largos quadris. Um cabelo volumoso. Negras raízes soltas no ar – cabelos de lua moça. Eram bonitos em liberdade. Mas ela prendia com um fio de arame. Era para ninguém tocar na cabeça dela. Passava o dia todo andando pela Vila do Mar. Comia do lixo. Nunca trocava de roupa. Andava descalça. Pés sujos. Pés de ferida aberta na memória da Vila.  A Vó Dália sempre que a encontrava, pegava em sua mão e a recolhia. Dava banho. Dava comida. Sentava Tia Treva no pasto perto da Figueira. Cantava canções de Oxum para ela. E dos olhos da Tia Treva pequenas cachoeiras em cicatriz se formavam. Cachoeiras mudas. Água envergonhada brotava dos olhos sem luz.  Tia Treva apertava bem os dedos contra a barriga. Enterrava bem o queixo no peito. Escavava a terra com os pés. Depois dormia em comunhão com o tronco da Figueira. Vó Dália espantava todos os meninos que entravam no pátio para perturbar a Tia Treva.
“-Deixem a criatura em paz!” Gritava bem alto a Vó Dália para mostrar autoridade. Parece que a sina desta Criatura é ser perseguida ou maltratada por alguém. Pai do Céu! Pensou a Vó agarrando a guia amarela – proteção de Oxum. “-Misericórdia, Senhora das Águas.” Falou a Vó ao relembrar o passado da Tia Treva.
Quando tinha 13 anos, Tereza era uma das meninas mais bonitas da Vila do Mar. Sempre aparentou mais idade pela exuberância de seu corpo. Despertava a paixão dos meninos da escola da Vila, mas não se importava com nada disso. Gostava de subir em árvore. Andar a cavalo no petiço. Pescar até a noitinha e brincar de noiva do mar com o cabelo cheio de espuma. Num dia desses conheceu um pescador que estava de passagem pela Vila. Aproximando-se da menina, o homem descobriu que o sonho dela era ver de perto um cavalo-marinho. Passaram-se uns dias quando o homem voltou à Vila e procurou por Tereza. Disse que tinha encontrado um cavalo-marinho do tamanho do Petiço. Tereza exultou de alegria. Era um sonho se realizando. E mais: ver um cavalo-marinho gigante. Era sorte. Muita sorte mesmo. Aceitou o convite do pescador para ir ao barco dele. Nem pensou que já estava ficando quase noite. Queria era botar logo os olhos no Gigante do mar. Quando Tereza chegou ao barco não tinha cavalo-marinho. Eram mais quatro homens. Rasgaram sua roupa. Amarraram a Tia Treva pelos pés. Pelas mãos. Deixaram-na de costas com o rosto enterrado no assoalho do barco. Todos os homens violaram barbaramente Tia Treva. Todos juntos. Muitas vezes. E foi dor para sempre. Neste dia, ela deixou de ser Tereza. A moça que gostava de vestido. De cavalo-marinho. Ficou uma semana desaparecida. Quando voltou para a Vila do Mar toda a gente descobriu que ela estava muda. Nunca mais falou. Nunca mais sorriu. A Vó Dália relembrava essa dor e sofria profundamente...

Como sempre acontecia, antes do sol raiar, Tia Treva partia da casa da Vó. Com a mesma roupa suja. E com os mesmos pés de dor sumia na Noite da Vila do Mar.

Marcela Wanglon Richter

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