domingo, 26 de novembro de 2017

O Rádio (escrito numa oficina em 2/2/2015)



Rádio Philco Ford 468
       Naquele tempo não tinha televisão. Para meu pai o rádio era o objeto mais importante da casa. Os primeiros eram grandes, acho que de válvulas, depois vieram os portáteis, com pilhas. Lembro-me de um chiado, não era sempre que se escutava bem. Tapinhas para fazer funcionar melhor. A vontade era de atirar longe. 
          E às vezes atirava mesmo.
       Meu pai gostava muito de futebol, torcia pelo Rio-grandense, o nosso Guri Teimoso. Acompanhávamos os jogos grudados no radinho. As partidas eram muito mais emocionantes que as de hoje. O jogo era muito mais corrido, parecia. O locutor esportivo passava todo seu entusiasmo e era como se estivéssemos em campo.
       Lembro de uma vez que tinha uma partida importante no Torquato Pontes, na Buarque de Macedo, onde hoje tem uns condomínios. Meu pai não foi ao jogo, acho que de nervoso, mas no finzinho me convidou para ir com ele até lá. Fiquei no carro, uma DKW. O time perdia por 2x1 e nos últimos minutos virou para 3x2. Ele voltou para o carro enlouquecido, feliz.
     Chegando em casa pega o radinho de novo. Agora era ouvir os comentários e entrevistas. E todo mundo quietinho, até a hora do jantar.
Um rádio antigo colocado sobre uma mesa trouxe essa lembrança de infância. De meu pai. Amanhã é aniversário dele, oitenta e seis anos.  
           
           Que saudade!

Por Eliane Macedo



domingo, 19 de novembro de 2017

Escritores de Quinta




Como diz a Karol: "Éramos um grupo que elegera a casa do Tonio e da Alison como local em que se podia crescer em sensibilidade nas demoradas discussões sobre literatura, cinema, teatro, música, fotografia, praia, pochete, porteiro... sempre regado a vinho. Nós, o grupo, que amadurecíamos nos primórdios do século XXI, na sala de estar deles." 

Parodiando esta contracapa do Schlee:


terça-feira, 14 de novembro de 2017

Maria sai para trabalhar




O quarto ainda está na penumbra e a brisa outonal entra pela janela entreaberta, balançando com suavidade a cortina branca. Maria desperta com o coração disparado, sonhou com um ladrão no jardim interno, pronto para pular a janela. Sonha isso mesmo sabendo das grades. Escuta os calcanhares da filha batendo pela casa. Estende o braço, agarra primeiro o celular, em seguida o remédio para tireoide e a água. Dá um vistaço na conta bancária, nas mensagens, no e-mail profissional e nas notícias. Levanta-se e abre a cortina esperando ver o jasmineiro florir ou a trepadeira encontrar seu caminho. Cuida da higiene com vagar, sempre na mesma ordem, porque na vez em que fez xixi depois de escovar os dentes, não teve trabalho. Nem um mero documento para traduzir. Faz hora até a filha sair, para depois então, preparar o café. Café forte na cafeteira italiana, duas torradas, manteiga boa e uma fatia de queijo cortada ao meio. Estende o jogo americano de palhinha, abre o laptop e aprecia a paz da casa quieta. Uma rotina de segunda a sexta. Veste-se e leva o cachorro para uma volta rápida. Na volta, mais uma xícara de café.
Sai da cozinha para trabalhar. Caminha exatos sete passos e meio e senta-se numa cadeira giratória moderna, em frente à escrivaninha antiga embaixo da estante do avô que não chegou a conhecer. Seu santuário. Espalhados por cima de tudo, os dicionários, livros, carimbos e porta-retratos. Quando cansa a cabeça, descansa olhando as fotos.

Maria não sabe como seria trabalhar com outras pessoas na mesma sala, porque ela não sabe bater papo. Maria não gosta de televisão, nem de séries, menos ainda de novelas. Maria não tem homem, nem mulher. Naqueles sete passos e meio entre a cozinha e o escritório, ela só tem que afagar o cachorro ou trocar uma palavra com a orquídea. Todos os dias ela agradece a profissão que tem, porque sinceramente não sabe o que seria dela se tivesse que abrir a porta e sair. 

[Exercício para PUC-EAD, personagem vai de casa para o trabalho - novembro 2017]

sábado, 4 de novembro de 2017

Façanha







Façanha


Dia um...
É um lugar fenomenal, incrível mesmo, embora eu não saiba onde estou. Mas isto não importa, me sinto leve como nunca antes em minha vida. Tudo bem que ela nem é tão longa assim, tenho dezesseis anos. Mas está longe de ser classificada de irrelevante. Protagonizei, por vezes, algumas experiências marcantes. As desimportantes, eu deleto, confesso, nem sei contar; mas as impactantes, ah, essas eu sou capaz de detalhar minuciosamente. Certa vez, fui um dos reféns de um roubo a um banco (e olha que a cidade na qual moro nem é grande). Outra, ganhei dois mil reais numa raspadinha da cidade. Beijei na boca aos dez anos. Fui bicampeão de futebol de salão com o time da escola. Perdi minha querida avó aos treze. Me perdi no mercado público, aos cinco, por quase quarenta minutos. Ah, e já fui pajem do casamento de uma prima minha. Para dezesseis anos, é uma vida interessante, não?
Mas quero falar é daqui onde me encontro no momento. Aqui... aqui é aconchegante e enorme. Tenho a sensação de estar voando, até me apalpo para ter certeza de que não criei asas. Não criei. Aquela cachoeira à esquerda me faz lembrar de uma viagem que fiz com minha avó, aos onze anos. Fomos visitar amigos em um estado vizinho ao nosso. Lá havia cachoeiras cinematográficas e uma brisa que fazia com que os cabelos longos e cacheados de vovó dançassem uma música suave. Como eu adorava aqueles cabelos! Se eu tivesse que descrever aqui, diria: este lugar é um imenso jardim, com animais felizes, flores resplandecentes e pássaros entoando belíssimas cantigas. Não sei quanto tempo já estou aqui, estou sem relógio, sem celular. Do que tenho convicção é de gostar de ficar sentado ao lado dessa cachoeira, ouvindo a água cair, os pássaros cantarem, vendo a beleza das flores e os animais correrem de um lado ao outro. É como se estivesse dentro de uma pintura dessas famosas.
Só estou achando estranho uma coisa: onde estão todos? Por que estou desfrutando de um lugar tão lindo desse sozinho? Nunca estive em camarote de nada, mas desde agora sei que sozinho é totalmente sem graça. Eu deveria estar indo à casa de um colega de aula fazer um trabalho importante para a escola. É em grupo, o resto da galera vai se reunir lá também. Na verdade, eu estava indo para lá, só não estou entendendo como vim parar aqui. Será que peguei um atalho errado e me perdi? Impossível, Alex mora num bairro vizinho ao meu, consigo chegar lá facilmente. Pedalando então, chego de olhos fechados! Além do mais, estudamos juntos desde o jardim de infância.
  O fato é que estou sozinho, num lugar paradisíaco, me sentindo leve e solto, voando sem asas. Nunca me envolvi com drogas, e nem sou pisciano, portanto, sem alucinações. Me belisco a cada minuto, mas também não estou sonhando. Quando escuto lá de longe, vozes. Uma delas até é bastante familiar.

- Não, não. Foi só coincidência de nome mesmo. Ufa! É até parecido, mas graças a Deus, não é ele.
- A senhora tem certeza?
-Absoluta!
- E não há nenhuma peculiaridade que possa identificá-lo prontamente?
- Até tem, mas só em olhar seu rosto, já posso assegurar que não é ele.
- Olha, ele já está aqui faz 24 horas. Encontramos sua carteira de identidade, e anunciaram na rádio a fim de que algum conhecido tomasse conhecimento e nos procurasse.
- A-ham. Bem... ele tem um sinal de nascença em sua parte íntima. Posso checar, para tranquilizar minha consciência e, principalmente, meu coração?
- Vá em frente, senhora.
Ela transportou-se, de imediato, para um lugar indescritível. Seus pés não tocavam o chão. Suas mãos suavam excessivamente, e sua cabeça rodava tal qual um pião. Levaram-na quase desmaiada para a sala ao final do corredor, a fim de que pudesse voltar a si. Mas a taquicardia não deixava.

Eu me encontro sentado, novamente, ao lado da cachoeira. Não tenho qualquer tipo de medo, só curiosidade. Por que estou aqui (sozinho)? Do que as vozes falavam? Ah, vou curtir mais isso daqui. Subitamente, vejo em outra cachoeira, a certa distância, uma pessoa sentada, cabelos cacheados, compridos e soltos, sorrindo tão felizmente a ponto de derrear a cabeça para trás. – Ufa, alguém! Bradei. –Bom demais, alguém para trocar uma ideia. Mas a pessoa não esperou que eu me aproximasse. Simplesmente se foi, sem nem olhar para mim.
Para ser sincero, eu iria curtir muito mais se Façanha estivesse aqui. Isso tudo é tão gigantesco que sozinho e a pé está ficando monótono (sequer consigo me sentir cansado). A propósito, Façanha é minha bicicleta. Somos inseparáveis. Desde que me entendo por gente, pedalar é meu hobby favorito. Pedalar por aí sempre me deixou em paz, seja por fazer me sentir mais bonito (em forma!), seja por me ajudar a tomar decisões. Além de fugir do trânsito. É atividade aeróbica fortalece o meu coração.

Dia dois...
- A senhora pode entrar um pouco. Se quiser, pode conversar com ele. Até recomendamos que o faça. Ele apresenta quadro de traumatismo craniano, devido ao impacto forte no acidente. Boa parte das pessoas que reverteram este panorama teve a quem ouvir. É certo que elas demonstravam pouca ou nenhuma reação a estímulos, mas para a recuperação, foi fundamental. Esta tarde, ele será submetido a uma cirurgia. Vamos ver como reagirá, se reagirá, de tal modo que possa sair do coma.
- Quais são as reais chances?
- Não há regras, senhora. Cada caso é ímpar. Ele pode se recuperar sem sequelas; com sequelas na fala, nos movimentos e/ou na visão e ser, posteriormente, encaminhado a tratamento fonoaudiológico e fisioterapêutico; assim como pode não acordar...
Ela tapou a boca com as mãos, suspendendo ambas as sobrancelhas. Suas rugas se multiplicaram fazendo-lhe aparentar dez anos em apenas dois dias. A ideia de perdê-lo a fazia sair de si.
- E aí, Regina, alguma novidade? O que o médico disse? Regina, Regina, fala alguma coisa!

Ei, Regina é a minha mãe! Escutei uma outra voz conhecida a chamando insistentemente. Mas a voz foi sumindo, terminei por escutá-la de longe. Me senti triste. Aliás, não tenho me sentido mais cem por cento neste lugar. Já estive mais conectado, embora sozinho. Agora, tenho a sensação de que estou apenas perambulando...

Dia três...
O vento abraça os cabelos de Fernando. Uma adrenalina envolve todo o seu corpo. Na companhia de Façanha, costumava fechar os olhos, suspender a cabeça, tirar as mãos do guidão e seguir pedalando em linha reta. De repente, sentiu-se tonto, perdendo o equilíbrio, tal qual aconteceu quando um miniônibus viera ao seu encontro, jogando-o no chão abruptamente. Desta vez, abre os olhos.



Por K.V.França