Façanha
Dia um...
É um lugar fenomenal, incrível mesmo, embora eu não saiba onde
estou. Mas isto não importa, me sinto leve como nunca antes em minha vida. Tudo
bem que ela nem é tão longa assim, tenho dezesseis anos. Mas está longe de ser
classificada de irrelevante. Protagonizei, por vezes, algumas experiências
marcantes. As desimportantes, eu deleto, confesso, nem sei contar; mas as
impactantes, ah, essas eu sou capaz de detalhar minuciosamente. Certa vez, fui
um dos reféns de um roubo a um banco (e olha que a cidade na qual moro nem é grande). Outra, ganhei dois mil reais numa raspadinha da cidade.
Beijei na boca aos dez anos. Fui bicampeão de futebol de salão com o time da
escola. Perdi minha querida avó aos treze. Me perdi no mercado público, aos
cinco, por quase quarenta minutos. Ah, e já fui pajem do casamento de uma prima
minha. Para dezesseis anos, é uma vida interessante, não?
Mas quero falar é daqui onde me encontro no momento. Aqui... aqui
é aconchegante e enorme. Tenho a sensação de estar voando, até me apalpo para
ter certeza de que não criei asas. Não criei. Aquela cachoeira à esquerda me
faz lembrar de uma viagem que fiz com minha avó, aos onze anos. Fomos visitar
amigos em um estado vizinho ao nosso. Lá havia
cachoeiras cinematográficas e uma brisa que fazia com
que os cabelos longos e cacheados de vovó dançassem uma música suave. Como eu
adorava aqueles cabelos! Se eu tivesse que descrever aqui, diria: este lugar é
um imenso jardim, com animais felizes, flores resplandecentes e pássaros
entoando belíssimas cantigas. Não sei quanto tempo já estou aqui, estou sem
relógio, sem celular. Do que tenho convicção é de gostar de ficar sentado ao
lado dessa cachoeira, ouvindo a água cair, os pássaros cantarem, vendo a beleza
das flores e os animais correrem de um lado ao outro. É como se estivesse
dentro de uma pintura dessas famosas.
Só estou achando estranho uma coisa: onde estão todos? Por que
estou desfrutando de um lugar tão lindo desse sozinho? Nunca estive em camarote
de nada, mas desde agora sei que sozinho é totalmente sem graça. Eu deveria
estar indo à casa de um colega de aula fazer um trabalho importante para a
escola. É em grupo, o resto da galera vai se reunir lá também. Na verdade, eu
estava indo para lá, só não estou entendendo como vim parar aqui. Será que
peguei um atalho errado e me perdi? Impossível, Alex mora num bairro vizinho ao
meu, consigo chegar lá facilmente. Pedalando então, chego de olhos fechados!
Além do mais, estudamos juntos desde o jardim de infância.
O fato é que estou
sozinho, num lugar paradisíaco, me sentindo leve e solto, voando sem asas.
Nunca me envolvi com drogas, e nem sou pisciano, portanto, sem alucinações. Me
belisco a cada minuto, mas também não estou sonhando. Quando escuto lá de
longe, vozes. Uma delas até é bastante familiar.
- Não, não. Foi só coincidência de nome mesmo. Ufa! É até
parecido, mas graças a Deus, não é ele.
- A senhora tem certeza?
-Absoluta!
- E não há nenhuma peculiaridade que possa identificá-lo
prontamente?
- Até tem, mas só em olhar seu rosto, já posso assegurar que não é
ele.
- Olha, ele já está aqui faz 24 horas. Encontramos sua carteira de
identidade, e anunciaram na rádio a fim de que algum conhecido tomasse
conhecimento e nos procurasse.
- A-ham. Bem... ele tem um sinal de nascença em sua parte íntima.
Posso checar, para tranquilizar minha consciência e, principalmente, meu
coração?
- Vá em frente, senhora.
Ela transportou-se, de imediato, para um lugar indescritível. Seus
pés não tocavam o chão. Suas mãos suavam excessivamente, e sua cabeça rodava
tal qual um pião. Levaram-na quase desmaiada para a sala ao final do corredor,
a fim de que pudesse voltar a si. Mas a taquicardia não deixava.
Eu me encontro sentado, novamente, ao lado da cachoeira. Não tenho
qualquer tipo de medo, só curiosidade. Por que estou aqui (sozinho)? Do que as
vozes falavam? Ah, vou curtir mais isso daqui. Subitamente, vejo em outra
cachoeira, a certa distância, uma pessoa sentada, cabelos cacheados, compridos
e soltos, sorrindo tão felizmente a ponto de derrear a cabeça para trás. – Ufa,
alguém! Bradei. –Bom demais, alguém para trocar uma ideia. Mas a pessoa não esperou
que eu me aproximasse. Simplesmente se foi, sem nem olhar para mim.
Para ser sincero, eu iria curtir muito mais se Façanha estivesse
aqui. Isso tudo é tão gigantesco que sozinho e a pé está ficando monótono
(sequer consigo me sentir cansado). A propósito, Façanha é minha bicicleta.
Somos inseparáveis. Desde que me entendo por gente, pedalar é meu hobby favorito. Pedalar por aí sempre me
deixou em paz, seja por fazer me sentir mais bonito (em forma!), seja por me
ajudar a tomar decisões. Além de fugir do trânsito. É atividade aeróbica
fortalece o meu coração.
Dia dois...
- A senhora pode entrar um pouco. Se quiser, pode conversar com
ele. Até recomendamos que o faça. Ele apresenta quadro de traumatismo craniano,
devido ao impacto forte no acidente. Boa parte das pessoas que reverteram este
panorama teve a quem ouvir. É certo que elas demonstravam pouca ou nenhuma
reação a estímulos, mas para a recuperação, foi fundamental. Esta tarde, ele
será submetido a uma cirurgia. Vamos ver como reagirá, se reagirá, de tal modo
que possa sair do coma.
- Quais são as reais chances?
- Não há regras, senhora. Cada caso é ímpar. Ele pode se recuperar
sem sequelas; com sequelas na fala, nos movimentos e/ou na visão e ser,
posteriormente, encaminhado a tratamento
fonoaudiológico e fisioterapêutico; assim como pode não acordar...
Ela
tapou a boca com as mãos, suspendendo ambas as sobrancelhas. Suas rugas se
multiplicaram fazendo-lhe aparentar dez anos em apenas dois dias. A ideia de
perdê-lo a fazia sair de si.
-
E aí, Regina, alguma novidade? O que o médico disse? Regina, Regina, fala
alguma coisa!
Ei, Regina é a minha mãe! Escutei uma outra voz conhecida a
chamando insistentemente. Mas a voz foi sumindo,
terminei por escutá-la de longe. Me senti triste. Aliás, não tenho me sentido
mais cem por cento neste lugar. Já estive mais conectado, embora sozinho.
Agora, tenho a sensação de que estou apenas perambulando...
Dia três...
O
vento abraça os cabelos de Fernando. Uma adrenalina envolve todo o seu corpo.
Na companhia de Façanha, costumava fechar os olhos, suspender a cabeça, tirar
as mãos do guidão e seguir pedalando em linha reta. De repente, sentiu-se
tonto, perdendo o equilíbrio, tal qual aconteceu quando um miniônibus viera ao
seu encontro, jogando-o no chão abruptamente. Desta vez, abre os olhos.
Por K.V.França
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