quarta-feira, 2 de maio de 2018
quinta-feira, 8 de março de 2018
O PODER DO FALO
Tudo gira em torno do falo. A
simbologia por trás dessa afirmação é forte e ultrapassa séculos. Seja por
poder, coragem, ou até mesmo vergonha, o falo nunca deixou de ocupar o lugar
mais alto do pódio.
De
acordo com a mitologia, havia uma mulher deslumbrante, que, embora despertasse
o desejo dos homens e a inveja das mulheres na Grécia, não podia relacionar-se
com ninguém por ser sacerdotisa de Atena. Entrementes, Poseidon, enlouquecido
de desejo, a violentou dentro do templo. Acusada de transgressora e profana,
foi amaldiçoada, tornando-se um monstro com a cabeça cheia de serpentes. Essa
mulher era Medusa, e a mudança em sua aparência, apenas o início do seu
castigo. Depois, seu olhar começou a petrificar as pessoas e sua cabeça oferecida
como troféu para o guerreiro que a trouxesse.
A
Grécia da mitologia é a mesma na qual a mulher não podia participar dos debates
públicos e políticos na Idade Antiga. Era-lhe permitido ir a festas religiosas
e assistir a peças teatrais, porém os pupilos dos donos do falo eram mais
interessantes para o prazer. A mulher, até então, nem era considerada povo.
Assim
como Medusa, a mulher, ao longo do tempo, vem passando de vítima a culpada pela
própria violência que sofreu.
Em meados do século XVIII, quando do
nascimento dos Direitos Humanos, a mulher nem mesmo era considerada humana.
Pode parecer chocante tal frase, entretanto, explico: após as Declarações dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e da Independência dos Estados Unidos
(1776), a França do final
do século XVIII usufruiu
de ganhos concernentes à igualdade de direitos, respectivamente, os protestantes,
judeus, negros livres. Em seguida, emancipou os escravos, e, apesar de ser a primeira nação
que possuía escravos a fazê-lo, sequer mencionou os direitos das mulheres,
quiçá discutiu-los. Elas só foram ganhar direito ao voto, por exemplo, no
século XIX.
Discorrer sobre o poder do falo não é
papo de feminista apenas. Freud, em seus estudos de psicanálise, concluiu que
as mulheres se caracterizavam pela ausência do falo e deste, sentiam inveja.
Por seu turno, os homens se caracterizavam pelo temor à castração e complexo de
Édipo. Para ele, o pênis era o grande responsável pela formação de caráter das
pessoas, todas elas.
Há uma luz no fim do túnel. A filosofia
de Sócrates, bem como a de filósofos indianos, apontam para o autoconhecimento
enquanto autocontrole e, a partir da mudança de pensamento, pode-se mudar a
postura frente ao mundo e quebrar paradigmas.
Mas é necessário que esta mudança venha aliada à ação. É aí que entra o
filósofo existencialista Sartre, ao afirmar que mais importante do que aquilo que
fazem de nós, é o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
O movimento feminista foi o precursor
de todos os outros minoritários. Na verdade, o que Sartre dizia era que, se
quisermos, podemos dar novos sentidos às nossas vidas, mudar o rumo do nosso
destino. Sermos autores de nossas próprias histórias. É isso que tentam fazer
os movimentos feministas desde a década de sessenta, ao começarem a questionar o
falo como símbolo de poder, e, por conseguinte, de opressão.
Se, em
pleno século XXI, o Japão ainda reconhece o pênis como garantidor de
fertilidade, prosperidade e protetor do povo contra o mal, tanto que ainda o
festeja no santuário de Tagata, uma tradição com mais de 1500 anos; o que
esperar das terras tupiniquins, onde se ousou tirar uma presidenta eleita para
que um golpe se instalasse no país e se perpetuasse mais um falo no poder?
Depois me perguntam para que serve o
feminismo. Exatamente para que nós, mulheres, tenhamos um lugar ao sol, apesar
da ausência do falo. Esse falo que teima em incorporar-se na história feminina para
além do substantivo simbólico a que tem sido acometido, mas como verbo,
traduzido pela ausência de voz. Enquanto isso, o falo tem poder, e este, é
apenas para o rei. E para seus amigos também.
K.V.França
domingo, 26 de novembro de 2017
O Rádio (escrito numa oficina em 2/2/2015)
![]() |
Rádio Philco Ford 468 |
E às vezes atirava mesmo.
Meu pai gostava muito de futebol, torcia pelo Rio-grandense,
o nosso Guri Teimoso. Acompanhávamos os jogos grudados no radinho. As partidas
eram muito mais emocionantes que as de hoje. O jogo era muito mais corrido,
parecia. O locutor esportivo passava todo seu entusiasmo e era como se
estivéssemos em campo.
Lembro de uma vez que tinha uma partida importante no
Torquato Pontes, na Buarque de Macedo, onde hoje tem uns condomínios. Meu pai
não foi ao jogo, acho que de nervoso, mas no finzinho me convidou para ir com
ele até lá. Fiquei no carro, uma DKW. O time perdia por 2x1 e nos últimos
minutos virou para 3x2. Ele voltou para o carro enlouquecido, feliz.
Chegando em casa pega o radinho de novo. Agora era ouvir os
comentários e entrevistas. E todo mundo quietinho, até a hora do jantar.
Um rádio antigo colocado sobre uma mesa trouxe essa lembrança
de infância. De meu pai. Amanhã é aniversário dele, oitenta e seis anos.
Que saudade!
Por Eliane Macedo
domingo, 19 de novembro de 2017
Escritores de Quinta
Como diz a Karol: "Éramos um grupo que elegera a casa do Tonio e da Alison como local em que se podia crescer em sensibilidade nas demoradas discussões sobre literatura, cinema, teatro, música, fotografia, praia, pochete, porteiro... sempre regado a vinho. Nós, o grupo, que amadurecíamos nos primórdios do século XXI, na sala de estar deles."
Parodiando esta contracapa do Schlee:
terça-feira, 14 de novembro de 2017
Maria sai para trabalhar
O quarto ainda está na penumbra e a brisa
outonal entra pela janela entreaberta, balançando com suavidade a cortina
branca. Maria desperta com o coração disparado, sonhou com um ladrão no jardim
interno, pronto para pular a janela. Sonha isso mesmo sabendo das grades.
Escuta os calcanhares da filha batendo pela casa. Estende o braço, agarra
primeiro o celular, em seguida o remédio para tireoide e a água. Dá um vistaço
na conta bancária, nas mensagens, no e-mail profissional e nas notícias.
Levanta-se e abre a cortina esperando ver o jasmineiro florir ou a trepadeira
encontrar seu caminho. Cuida da higiene com vagar, sempre na mesma ordem,
porque na vez em que fez xixi depois de escovar os dentes, não teve trabalho. Nem
um mero documento para traduzir. Faz hora até a filha sair, para depois então,
preparar o café. Café forte na cafeteira italiana, duas torradas, manteiga boa
e uma fatia de queijo cortada ao meio. Estende o jogo americano de palhinha,
abre o laptop e aprecia a paz da casa quieta. Uma rotina de segunda a sexta.
Veste-se e leva o cachorro para uma volta rápida. Na volta, mais uma xícara de
café.
Sai da cozinha para trabalhar. Caminha exatos
sete passos e meio e senta-se numa cadeira giratória moderna, em frente à escrivaninha
antiga embaixo da estante do avô que não chegou a conhecer. Seu santuário.
Espalhados por cima de tudo, os dicionários, livros, carimbos e porta-retratos.
Quando cansa a cabeça, descansa olhando as fotos.
Maria não sabe como seria trabalhar com
outras pessoas na mesma sala, porque ela não sabe bater papo. Maria não gosta
de televisão, nem de séries, menos ainda de novelas. Maria não tem homem, nem
mulher. Naqueles sete passos e meio entre a cozinha e o escritório, ela só tem
que afagar o cachorro ou trocar uma palavra com a orquídea. Todos os dias ela
agradece a profissão que tem, porque sinceramente não sabe o que seria dela se
tivesse que abrir a porta e sair.
[Exercício para PUC-EAD, personagem vai de casa para o trabalho - novembro 2017]
sábado, 4 de novembro de 2017
Façanha
Façanha
Dia um...
É um lugar fenomenal, incrível mesmo, embora eu não saiba onde
estou. Mas isto não importa, me sinto leve como nunca antes em minha vida. Tudo
bem que ela nem é tão longa assim, tenho dezesseis anos. Mas está longe de ser
classificada de irrelevante. Protagonizei, por vezes, algumas experiências
marcantes. As desimportantes, eu deleto, confesso, nem sei contar; mas as
impactantes, ah, essas eu sou capaz de detalhar minuciosamente. Certa vez, fui
um dos reféns de um roubo a um banco (e olha que a cidade na qual moro nem é grande). Outra, ganhei dois mil reais numa raspadinha da cidade.
Beijei na boca aos dez anos. Fui bicampeão de futebol de salão com o time da
escola. Perdi minha querida avó aos treze. Me perdi no mercado público, aos
cinco, por quase quarenta minutos. Ah, e já fui pajem do casamento de uma prima
minha. Para dezesseis anos, é uma vida interessante, não?
Mas quero falar é daqui onde me encontro no momento. Aqui... aqui
é aconchegante e enorme. Tenho a sensação de estar voando, até me apalpo para
ter certeza de que não criei asas. Não criei. Aquela cachoeira à esquerda me
faz lembrar de uma viagem que fiz com minha avó, aos onze anos. Fomos visitar
amigos em um estado vizinho ao nosso. Lá havia
cachoeiras cinematográficas e uma brisa que fazia com
que os cabelos longos e cacheados de vovó dançassem uma música suave. Como eu
adorava aqueles cabelos! Se eu tivesse que descrever aqui, diria: este lugar é
um imenso jardim, com animais felizes, flores resplandecentes e pássaros
entoando belíssimas cantigas. Não sei quanto tempo já estou aqui, estou sem
relógio, sem celular. Do que tenho convicção é de gostar de ficar sentado ao
lado dessa cachoeira, ouvindo a água cair, os pássaros cantarem, vendo a beleza
das flores e os animais correrem de um lado ao outro. É como se estivesse
dentro de uma pintura dessas famosas.
Só estou achando estranho uma coisa: onde estão todos? Por que
estou desfrutando de um lugar tão lindo desse sozinho? Nunca estive em camarote
de nada, mas desde agora sei que sozinho é totalmente sem graça. Eu deveria
estar indo à casa de um colega de aula fazer um trabalho importante para a
escola. É em grupo, o resto da galera vai se reunir lá também. Na verdade, eu
estava indo para lá, só não estou entendendo como vim parar aqui. Será que
peguei um atalho errado e me perdi? Impossível, Alex mora num bairro vizinho ao
meu, consigo chegar lá facilmente. Pedalando então, chego de olhos fechados!
Além do mais, estudamos juntos desde o jardim de infância.
O fato é que estou
sozinho, num lugar paradisíaco, me sentindo leve e solto, voando sem asas.
Nunca me envolvi com drogas, e nem sou pisciano, portanto, sem alucinações. Me
belisco a cada minuto, mas também não estou sonhando. Quando escuto lá de
longe, vozes. Uma delas até é bastante familiar.
- Não, não. Foi só coincidência de nome mesmo. Ufa! É até
parecido, mas graças a Deus, não é ele.
- A senhora tem certeza?
-Absoluta!
- E não há nenhuma peculiaridade que possa identificá-lo
prontamente?
- Até tem, mas só em olhar seu rosto, já posso assegurar que não é
ele.
- Olha, ele já está aqui faz 24 horas. Encontramos sua carteira de
identidade, e anunciaram na rádio a fim de que algum conhecido tomasse
conhecimento e nos procurasse.
- A-ham. Bem... ele tem um sinal de nascença em sua parte íntima.
Posso checar, para tranquilizar minha consciência e, principalmente, meu
coração?
- Vá em frente, senhora.
Ela transportou-se, de imediato, para um lugar indescritível. Seus
pés não tocavam o chão. Suas mãos suavam excessivamente, e sua cabeça rodava
tal qual um pião. Levaram-na quase desmaiada para a sala ao final do corredor,
a fim de que pudesse voltar a si. Mas a taquicardia não deixava.
Eu me encontro sentado, novamente, ao lado da cachoeira. Não tenho
qualquer tipo de medo, só curiosidade. Por que estou aqui (sozinho)? Do que as
vozes falavam? Ah, vou curtir mais isso daqui. Subitamente, vejo em outra
cachoeira, a certa distância, uma pessoa sentada, cabelos cacheados, compridos
e soltos, sorrindo tão felizmente a ponto de derrear a cabeça para trás. – Ufa,
alguém! Bradei. –Bom demais, alguém para trocar uma ideia. Mas a pessoa não esperou
que eu me aproximasse. Simplesmente se foi, sem nem olhar para mim.
Para ser sincero, eu iria curtir muito mais se Façanha estivesse
aqui. Isso tudo é tão gigantesco que sozinho e a pé está ficando monótono
(sequer consigo me sentir cansado). A propósito, Façanha é minha bicicleta.
Somos inseparáveis. Desde que me entendo por gente, pedalar é meu hobby favorito. Pedalar por aí sempre me
deixou em paz, seja por fazer me sentir mais bonito (em forma!), seja por me
ajudar a tomar decisões. Além de fugir do trânsito. É atividade aeróbica
fortalece o meu coração.
Dia dois...
- A senhora pode entrar um pouco. Se quiser, pode conversar com
ele. Até recomendamos que o faça. Ele apresenta quadro de traumatismo craniano,
devido ao impacto forte no acidente. Boa parte das pessoas que reverteram este
panorama teve a quem ouvir. É certo que elas demonstravam pouca ou nenhuma
reação a estímulos, mas para a recuperação, foi fundamental. Esta tarde, ele
será submetido a uma cirurgia. Vamos ver como reagirá, se reagirá, de tal modo
que possa sair do coma.
- Quais são as reais chances?
- Não há regras, senhora. Cada caso é ímpar. Ele pode se recuperar
sem sequelas; com sequelas na fala, nos movimentos e/ou na visão e ser,
posteriormente, encaminhado a tratamento
fonoaudiológico e fisioterapêutico; assim como pode não acordar...
Ela
tapou a boca com as mãos, suspendendo ambas as sobrancelhas. Suas rugas se
multiplicaram fazendo-lhe aparentar dez anos em apenas dois dias. A ideia de
perdê-lo a fazia sair de si.
-
E aí, Regina, alguma novidade? O que o médico disse? Regina, Regina, fala
alguma coisa!
Ei, Regina é a minha mãe! Escutei uma outra voz conhecida a
chamando insistentemente. Mas a voz foi sumindo,
terminei por escutá-la de longe. Me senti triste. Aliás, não tenho me sentido
mais cem por cento neste lugar. Já estive mais conectado, embora sozinho.
Agora, tenho a sensação de que estou apenas perambulando...
Dia três...
O
vento abraça os cabelos de Fernando. Uma adrenalina envolve todo o seu corpo.
Na companhia de Façanha, costumava fechar os olhos, suspender a cabeça, tirar
as mãos do guidão e seguir pedalando em linha reta. De repente, sentiu-se
tonto, perdendo o equilíbrio, tal qual aconteceu quando um miniônibus viera ao
seu encontro, jogando-o no chão abruptamente. Desta vez, abre os olhos.
Por K.V.França
quinta-feira, 26 de outubro de 2017
Estamos todos bem e cada um na sua!
Estamos todos bem e cada um na sua!
Assisti a um filme outro dia, meio por acaso zapeando, gostei do título, li as informações, tive a certeza (e não me enganei) de que iria me emocionar. "Estão todos bem" se chama a co-produção Itália - EUA, 2009, direção de Kirk Jones e no elenco Robert De Niro.
Não
vou contar todo o filme, só traçar rapidamente o fio da história.. Robert De
Niro atua de modo brilhante como sempre, na pele de um aposentado, recém viúvo
que busca reencontrar os quatro filhos espalhados por diferentes e distantes
cidades norte-americanas. O filme mostra as viagens do protagonista ao encontro
dos filhos, tem um ritmo lento, reflexivo, recheado de imagens poéticas,
diálogos e silêncios. Tem o tom que tanto aprecio no cinema europeu, lamento não
ser em italiano, para mim deixaria o filme um tanto mais dramático.
O
filme acompanha a tal visita surpresa do pai à residência dos filhos, que não
parece ser muito bem-vinda por parte das "crianças" como ele se refere à prole
adulta. Percebe-se que todos querem demonstrar que estão bem para o pai,
preocupado com a felicidade dos filhos, aí o título. Belas imagens em que
relembra os filhos pequenos e as conversas sobre a escolha profissional e o
futuro de cada um. O pai exigente quer que sejam todos artistas, estimula o
talento de cada um. E eles se tornam: músico, artista plástico, bailarina,
publicitária.
O
filme dá muito pano pra manga, por isto vou selecionar somente alguns, senão o
texto ultrapassará os caracteres e a paciência do prezado leitor. Os discursos
do pai com os filhos sobre a escolha profissional permeavam o papel social da
profissão a ser escolhida e não a felicidade ao executar determinadas tarefas
cotidianas. Claro, os pais sempre querem que os filhos sejam felizes (o que,
aliás, o protagonista pergunta a cada filho nesta visita surpresa), o que se
esquece é de perceber que a felicidade não é igual pra todo mundo e que uma
profissão de maior ou menor prestígio talvez não revele maior ou menor índice
de felicidade.
Outro
ponto importante é a preocupação excessiva dos filhos em demonstrar uma vida
falsa para o pai, aparentam algo que não são na verdade, tudo para preservar
uma imagem criada pelo pai e que desejam manter. Um jogo de inverdade para
assegurar uma vida feliz ou pelo menos dentro dos moldes que o pai julga como
feliz.
A
verdade é esta, no filme e na vida: nós, na posição de filhos, queremos ser
felizes para dizer aos nossos pais que a vida está ótima e que eles não geraram
um bando de inúteis, que podem se orgulhar de nossos feitos. Nós, na posição de
pais, cobramos uma felicidade idealizada com a profissão que sonhamos e com o
futuro traçado por nossos esboços e não pelos de nossos filhos que podem ter um
traço muito diferente do considerado ideal e que por vias meio-tortas os podem
levar a felicidade.
Então
tá, registrada minha dica de filme e minha ínfima reflexão sobre a felicidade
de cada um.
Joselma Noal
domingo, 15 de outubro de 2017
Mosaicos
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Foto de Alison G. Altmayer |
MOSAICOS
Ah, se apenas eu tivesse a coragem de dizer o
quanto te amo, eu começaria assim: "sabe? ontem sonhei contigo". E quando soubesses o
quanto te amo, me esperarias. Me esperarias como no sonho: lá na frente, no
altar, com os pés a balançar teu corpo maduro. Minhas mãos entretidas abraçando
o buquê, tuas mãos não acharias onde colocar.
E depois que soubesses o quanto te amo,
emocionado olharias nos meus olhos límpidos. Meu vestido branco a deslizar com
vagar, espalhando as pétalas vermelhas pelos mosaicos portugueses da nave.
Talvez um dia, quem sabe no intervalo ou no
cafezinho, eu te diga baixinho: ontem sonhei contigo.
Miniconto para o Sarau do Amor, junho 2017
sábado, 7 de outubro de 2017
A fazenda
Na fazenda
Da vitrola sai um som rascante, chiado de 78 rpm. Vivaldi é o
compositor, Deutsch Gramophone é a etiqueta. No embalo da cadeira de balanço,
ela se enrola numa manta grossa e pede ao filho que coloque mais uma tora de
eucalipto na lareira. O vinho de Bento e alguns pinhões fumegantes ajudam a
aquecer. Um neto desenha no vidro embaçado e espia o capim congelado do lado de
fora. Ali na entrada o cabide está pesado com ponchos e gorros. A conversa gira
em torno da compra de sementes, do preço astronômico dos insumos e sobre a
cachaça com butiá que ainda não está bem curtida. Da cozinha vem o cheiro da
chimia fervendo no tacho de cobre e do pão caseiro aprontando no forno de
barro. O calendário do Sagrado Coração diz que é o último dia, mas o frio
parece querer ficar. A nora e os netos menores já subiram, cada qual com sua
botija de água quente para aquecer o início da noite na cama gelada.
Na manhã seguinte o sol nasce levantando fumaça de geada dos
campos. Até o meio da manhã uma cerração leve e depois o céu azul e um pouco de
vento. Os álamos margeando o caminho até a porteira já estão brotados. As dunas
da beira da praia floriram de amarelo, margaridas em profusão. As borboletas
que até ontem eram meros casulos, hoje esvoaçam seu colorido. Dona Maria
Leovegilda calça seus tamancos e vai alimentar as galinhas, suas queridinhas.
Nem olha para a cadeira de balanço. Não lhe peçam galinha ao molho pardo, pois
vira fera. O frio diminuiu muito mas não se pode dispensar um casaquinho leve,
principalmente por causa da artrite. A Bendita, cadela misto de pastor com
ovelheiro, deu cria essa noite. São mais oito cuscos para alimentar. Maria
chama o neto mais velho e pede que anuncie os cachorrinhos nos vizinhos: serão
doados para quem se interessar. O guri, meio contrariado, encilha o baio e se
toca pelo campo. Na volta anuncia que pelo menos seis terão casa nova, quando
desmamarem, não importa se machos ou fêmeas. Por sua vez ele elege um deles, o
mais sapeca, para ser seu. A avó concorda.
Moleque, o cachorro de Felipe cresceu muito nesses quatro
meses, e tem paixão por banho. O resto da ninhada foi distribuído, mas com
freqüência se encontram todos no açude. Dias quentes e correrias por campos e
matos juntam cães e guris na volta d água. Jangadas são improvisadas e grandes
competições de natação são realizadas. O paraíso daqueles dias só é perturbado
pela mosquitada do entardecer, quando fogueiras de eucalipto e bosta de vaca, seca,
servem para espantar os insetos. E a noite chega sempre estrelada e com um
coral de grilos. A coruja, moradora do telhado do celeiro, inicia sua faina
noturna, mas os guris não percebem pois dormem empedrados depois de tanta
atividade.
O caminho até a porteira está atapetado de folhas secas e a
caminhada para pegar o ônibus escolar é crocante. Passa cedo o João do Bus,
assim apelidado pela irreverência dos guris que reiniciam suas aulas. A escola
é longe e nem sempre a professora consegue chegar, as estradas são terríveis e
as chuvas de março não ajudam em nada.O João de barro termina sua casa, sempre
com a porta protegida do nordeste, vento que predomina na região.D. Maria volta
a tricotar pois os guris crescem e o pulôver do ano passado já não serve mais.
E tem mantas de pescoço que necessitam uma reforma. O Luizão enche o depósito
com lenha e os canos do aquecedor são revisados, a serpentina funcionando bem é
vital para o conforto dos próximos meses. Foi tudo muito rápido e um novo ciclo
inicia. Desta vez com a cachaça de butiá já bem maturada.
sexta-feira, 6 de outubro de 2017
Tia Treva
Tem gente
que anda como se quisesse sempre voltar para o ventre, ou nunca ter vindo para
esse mundo.
A Tia Treva
era assim.
Ela não
tinha dentes. O queixo dela era caído
como se os ossos quisessem furar o chão e enterrar a Tia Treva no fundo do
barro. Para nunca mais sair. Tinha seios enormes. Largos quadris. Um cabelo
volumoso. Negras raízes soltas no ar – cabelos de lua moça. Eram bonitos em
liberdade. Mas ela prendia com um fio de arame. Era para ninguém tocar na
cabeça dela. Passava o dia todo andando pela Vila do Mar. Comia do lixo. Nunca
trocava de roupa. Andava descalça. Pés sujos. Pés de ferida aberta na memória
da Vila. A Vó Dália sempre que a
encontrava, pegava em sua mão e a recolhia. Dava banho. Dava comida. Sentava
Tia Treva no pasto perto da Figueira. Cantava canções de Oxum para ela. E dos
olhos da Tia Treva pequenas cachoeiras em cicatriz se formavam. Cachoeiras mudas.
Água envergonhada brotava dos olhos sem luz. Tia Treva apertava bem os dedos contra a
barriga. Enterrava bem o queixo no peito. Escavava a terra com os pés. Depois
dormia em comunhão com o tronco da Figueira. Vó Dália espantava todos os
meninos que entravam no pátio para perturbar a Tia Treva.
“-Deixem a
criatura em paz!” Gritava bem alto a Vó Dália para mostrar autoridade. Parece
que a sina desta Criatura é ser perseguida ou maltratada por alguém. Pai do
Céu! Pensou a Vó agarrando a guia amarela – proteção de Oxum. “-Misericórdia,
Senhora das Águas.” Falou a Vó ao relembrar o passado da Tia Treva.
Quando
tinha 13 anos, Tereza era uma das meninas mais bonitas da Vila do Mar. Sempre
aparentou mais idade pela exuberância de seu corpo. Despertava a paixão dos
meninos da escola da Vila, mas não se importava com nada disso. Gostava de
subir em árvore. Andar a cavalo no petiço. Pescar até a noitinha e brincar de
noiva do mar com o cabelo cheio de espuma. Num dia desses conheceu um pescador
que estava de passagem pela Vila. Aproximando-se da menina, o homem descobriu
que o sonho dela era ver de perto um cavalo-marinho. Passaram-se uns dias
quando o homem voltou à Vila e procurou por Tereza. Disse que tinha encontrado
um cavalo-marinho do tamanho do Petiço. Tereza exultou de alegria. Era um sonho
se realizando. E mais: ver um cavalo-marinho gigante. Era sorte. Muita sorte
mesmo. Aceitou o convite do pescador para ir ao barco dele. Nem pensou que já
estava ficando quase noite. Queria era botar logo os olhos no Gigante do mar. Quando
Tereza chegou ao barco não tinha cavalo-marinho. Eram mais quatro homens.
Rasgaram sua roupa. Amarraram a Tia Treva pelos pés. Pelas mãos. Deixaram-na de
costas com o rosto enterrado no assoalho do barco. Todos os homens violaram
barbaramente Tia Treva. Todos juntos. Muitas vezes. E foi dor para sempre.
Neste dia, ela deixou de ser Tereza. A moça que gostava de vestido. De
cavalo-marinho. Ficou uma semana desaparecida. Quando voltou para a Vila do Mar
toda a gente descobriu que ela estava muda. Nunca mais falou. Nunca mais
sorriu. A Vó Dália relembrava essa dor e sofria profundamente...
Como sempre
acontecia, antes do sol raiar, Tia Treva partia da casa da Vó. Com a mesma
roupa suja. E com os mesmos pés de dor sumia na Noite da Vila do Mar.
Marcela Wanglon Richter
domingo, 1 de outubro de 2017
SOLIDÕES
Julieta
estende o braço até a mesa de cabeceira e com os olhos ainda fechados tateia o
telefone celular preso ao carregador de bateria, sem enxergar direito desliza o
dedo sobre a tela, mais 5 minutos de sono. O alarme soa de novo, desta vez os olhos
se abrem para as 35 notificações. 4 conversas 27 mensagens no Whatsapp, 3
marcações em posts do Facebook, 2 conversas no Messenger, 2 crushs no Happne
uma mensagem nova no Tinder. Bom dia Mundo! 15 minutos depois, atrasada,
Julieta levanta correndo, toma um banho rápido, coloca a roupa separada na
noite anterior, fecha a mochila e corre até a parada. Meio segundo e o ônibus
passa. Senta no antepenúltimo banco, do lado do corredor, coloca o fone de
ouvido e repousa com as descobertas da semana disponíveis no Spotify. A
velhinha sobe, a criança chora, o homem leva uma bofetada na cara por tocar as
pernas nuas da moça e Julieta só abre os olhos na penúltima parada antes da
praça, onde salta. Do fone já não sai mais música, mas a voz do chefe, colocando
prazo para as tarefas do dia. Atravessa na faixa com o sinal fechado prometendo
cumprir o solicitado, se quer escuta os xingamentos do motorista ao desviar seu
caminho. Passa na padaria, pega uma empada folhada de palmito e uma coca-cola.
Do tchau e do bom dia nem escuta a resposta, segue na ligação. Chega no
escritório, tira o fone, bate o ponto, deseja bom dia, e só escuta vozes
falando ao telefone. No tempo de ligar o computador responde que lasanha de
brócolis é seu prato preferido para o gatinho do Tinder, mesmo sabendo ser
quase impossível receber um convite para jantar. Enquanto elabora o relatório da última
inspeção ao frigorífico, combina o encontro anual com as amigas de escola, o
jantar na casa da avó no próximo domingo e descobre a traição do namorado da ex
melhor amiga. Recebe outro telefonema do chefe, cobrando o relatório cujo prazo
é o final do dia. A dor que Julieta vinha sentindo na última semana se
intensifica, dói a cabeça, dói o pescoço, doem os braços. Julieta corre contra
o tempo, silencia as conversas no Whats, pausa o Tinder e o Happn, suporta o
desejo quase incontrolável de verificar as atualizações do Facebook e termina o
relatório as 4h da tarde. Já sem o efeito do paracetamol Julieta segue o
conselho da mãe e busca o pronto atendimento do plano de saúde. Preocupada,
descreve todos os sintomas no Google, preparando-se para a conversa com o médico.
Cefaleia, meningite, enxaqueca... Julieta, acompanhada de um taquicardia tem
seu número chamado. Tentada entre o médico e a fuga pela porta de saída, baixa
a cabeça e segue em direção ao consultório. Após meia hora de perguntas e meias
repostas, se percebe sedentária, sem postura, mal hábitos alimentares, poucas
horas de sono e distantes alegrias. Depois de algumas quadras caminhadas e
muitos pensamentos cruzados tira o telefone da mochila para falar com a mãe,
sem ter em conta a hora e a esquina escura, seu telefone é levado pelo rapaz de
capuz com a faca escondida no casaco. Julieta não chora, nem sorri, apenas quer
chegar em casa. Sobe no ônibus, senta no penúltimo banco, no caminho cede o
lugar para a velhinha cheia de sacolas, oferece uma bala para a criança que chora
e avisa ao cobrador do senhor mal intencionado com a menina da
frente. Salta, caminha três longas quadras, um pingo cai na sua cabeça, não é
gota de chuva, olha o céu cheio de estrelas, tantas estrelas como há tempos não
vê, e brilham muito. Chega em casa, toma um banho, deita na cama vazia.
Sozinha. Sem mensagens, sem notificações, sem crushs... Olha para o lustre do
quarto,girando com luzes coloridas. Perde alguns minutos. Desliga a luz e dorme.
Sonha como há tempos não fazia.
Paula Canabarro
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