quinta-feira, 8 de março de 2018

O PODER DO FALO


Tudo gira em torno do falo. A simbologia por trás dessa afirmação é forte e ultrapassa séculos. Seja por poder, coragem, ou até mesmo vergonha, o falo nunca deixou de ocupar o lugar mais alto do pódio.
De acordo com a mitologia, havia uma mulher deslumbrante, que, embora despertasse o desejo dos homens e a inveja das mulheres na Grécia, não podia relacionar-se com ninguém por ser sacerdotisa de Atena. Entrementes, Poseidon, enlouquecido de desejo, a violentou dentro do templo. Acusada de transgressora e profana, foi amaldiçoada, tornando-se um monstro com a cabeça cheia de serpentes. Essa mulher era Medusa, e a mudança em sua aparência, apenas o início do seu castigo. Depois, seu olhar começou a petrificar as pessoas e sua cabeça oferecida como troféu para o guerreiro que a trouxesse.
A Grécia da mitologia é a mesma na qual a mulher não podia participar dos debates públicos e políticos na Idade Antiga. Era-lhe permitido ir a festas religiosas e assistir a peças teatrais, porém os pupilos dos donos do falo eram mais interessantes para o prazer. A mulher, até então, nem era considerada povo. Assim como Medusa, a mulher, ao longo do tempo, vem passando de vítima a culpada pela própria violência que sofreu.
Em meados do século XVIII, quando do nascimento dos Direitos Humanos, a mulher nem mesmo era considerada humana. Pode parecer chocante tal frase, entretanto, explico: após as Declarações dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e da Independência dos Estados Unidos (1776), a França do final do século XVIII usufruiu de ganhos concernentes à igualdade de direitos, respectivamente, os protestantes, judeus, negros livres. Em seguida, emancipou os escravos, e, apesar de ser a primeira nação que possuía escravos a fazê-lo, sequer mencionou os direitos das mulheres, quiçá discutiu-los. Elas só foram ganhar direito ao voto, por exemplo, no século XIX.
Discorrer sobre o poder do falo não é papo de feminista apenas. Freud, em seus estudos de psicanálise, concluiu que as mulheres se caracterizavam pela ausência do falo e deste, sentiam inveja. Por seu turno, os homens se caracterizavam pelo temor à castração e complexo de Édipo. Para ele, o pênis era o grande responsável pela formação de caráter das pessoas, todas elas.
Há uma luz no fim do túnel. A filosofia de Sócrates, bem como a de filósofos indianos, apontam para o autoconhecimento enquanto autocontrole e, a partir da mudança de pensamento, pode-se mudar a postura frente ao mundo e quebrar paradigmas.  Mas é necessário que esta mudança venha aliada à ação. É aí que entra o filósofo existencialista Sartre, ao afirmar que mais importante do que aquilo que fazem de nós, é o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
O movimento feminista foi o precursor de todos os outros minoritários. Na verdade, o que Sartre dizia era que, se quisermos, podemos dar novos sentidos às nossas vidas, mudar o rumo do nosso destino. Sermos autores de nossas próprias histórias. É isso que tentam fazer os movimentos feministas desde a década de sessenta, ao começarem a questionar o falo como símbolo de poder, e, por conseguinte, de opressão.
Se, em pleno século XXI, o Japão ainda reconhece o pênis como garantidor de fertilidade, prosperidade e protetor do povo contra o mal, tanto que ainda o festeja no santuário de Tagata, uma tradição com mais de 1500 anos; o que esperar das terras tupiniquins, onde se ousou tirar uma presidenta eleita para que um golpe se instalasse no país e se perpetuasse mais um falo no poder?
 Depois me perguntam para que serve o feminismo. Exatamente para que nós, mulheres, tenhamos um lugar ao sol, apesar da ausência do falo. Esse falo que teima em incorporar-se na história feminina para além do substantivo simbólico a que tem sido acometido, mas como verbo, traduzido pela ausência de voz. Enquanto isso, o falo tem poder, e este, é apenas para o rei. E para seus amigos também.


K.V.França





domingo, 26 de novembro de 2017

O Rádio (escrito numa oficina em 2/2/2015)



Rádio Philco Ford 468
       Naquele tempo não tinha televisão. Para meu pai o rádio era o objeto mais importante da casa. Os primeiros eram grandes, acho que de válvulas, depois vieram os portáteis, com pilhas. Lembro-me de um chiado, não era sempre que se escutava bem. Tapinhas para fazer funcionar melhor. A vontade era de atirar longe. 
          E às vezes atirava mesmo.
       Meu pai gostava muito de futebol, torcia pelo Rio-grandense, o nosso Guri Teimoso. Acompanhávamos os jogos grudados no radinho. As partidas eram muito mais emocionantes que as de hoje. O jogo era muito mais corrido, parecia. O locutor esportivo passava todo seu entusiasmo e era como se estivéssemos em campo.
       Lembro de uma vez que tinha uma partida importante no Torquato Pontes, na Buarque de Macedo, onde hoje tem uns condomínios. Meu pai não foi ao jogo, acho que de nervoso, mas no finzinho me convidou para ir com ele até lá. Fiquei no carro, uma DKW. O time perdia por 2x1 e nos últimos minutos virou para 3x2. Ele voltou para o carro enlouquecido, feliz.
     Chegando em casa pega o radinho de novo. Agora era ouvir os comentários e entrevistas. E todo mundo quietinho, até a hora do jantar.
Um rádio antigo colocado sobre uma mesa trouxe essa lembrança de infância. De meu pai. Amanhã é aniversário dele, oitenta e seis anos.  
           
           Que saudade!

Por Eliane Macedo



domingo, 19 de novembro de 2017

Escritores de Quinta




Como diz a Karol: "Éramos um grupo que elegera a casa do Tonio e da Alison como local em que se podia crescer em sensibilidade nas demoradas discussões sobre literatura, cinema, teatro, música, fotografia, praia, pochete, porteiro... sempre regado a vinho. Nós, o grupo, que amadurecíamos nos primórdios do século XXI, na sala de estar deles." 

Parodiando esta contracapa do Schlee:


terça-feira, 14 de novembro de 2017

Maria sai para trabalhar




O quarto ainda está na penumbra e a brisa outonal entra pela janela entreaberta, balançando com suavidade a cortina branca. Maria desperta com o coração disparado, sonhou com um ladrão no jardim interno, pronto para pular a janela. Sonha isso mesmo sabendo das grades. Escuta os calcanhares da filha batendo pela casa. Estende o braço, agarra primeiro o celular, em seguida o remédio para tireoide e a água. Dá um vistaço na conta bancária, nas mensagens, no e-mail profissional e nas notícias. Levanta-se e abre a cortina esperando ver o jasmineiro florir ou a trepadeira encontrar seu caminho. Cuida da higiene com vagar, sempre na mesma ordem, porque na vez em que fez xixi depois de escovar os dentes, não teve trabalho. Nem um mero documento para traduzir. Faz hora até a filha sair, para depois então, preparar o café. Café forte na cafeteira italiana, duas torradas, manteiga boa e uma fatia de queijo cortada ao meio. Estende o jogo americano de palhinha, abre o laptop e aprecia a paz da casa quieta. Uma rotina de segunda a sexta. Veste-se e leva o cachorro para uma volta rápida. Na volta, mais uma xícara de café.
Sai da cozinha para trabalhar. Caminha exatos sete passos e meio e senta-se numa cadeira giratória moderna, em frente à escrivaninha antiga embaixo da estante do avô que não chegou a conhecer. Seu santuário. Espalhados por cima de tudo, os dicionários, livros, carimbos e porta-retratos. Quando cansa a cabeça, descansa olhando as fotos.

Maria não sabe como seria trabalhar com outras pessoas na mesma sala, porque ela não sabe bater papo. Maria não gosta de televisão, nem de séries, menos ainda de novelas. Maria não tem homem, nem mulher. Naqueles sete passos e meio entre a cozinha e o escritório, ela só tem que afagar o cachorro ou trocar uma palavra com a orquídea. Todos os dias ela agradece a profissão que tem, porque sinceramente não sabe o que seria dela se tivesse que abrir a porta e sair. 

[Exercício para PUC-EAD, personagem vai de casa para o trabalho - novembro 2017]

sábado, 4 de novembro de 2017

Façanha







Façanha


Dia um...
É um lugar fenomenal, incrível mesmo, embora eu não saiba onde estou. Mas isto não importa, me sinto leve como nunca antes em minha vida. Tudo bem que ela nem é tão longa assim, tenho dezesseis anos. Mas está longe de ser classificada de irrelevante. Protagonizei, por vezes, algumas experiências marcantes. As desimportantes, eu deleto, confesso, nem sei contar; mas as impactantes, ah, essas eu sou capaz de detalhar minuciosamente. Certa vez, fui um dos reféns de um roubo a um banco (e olha que a cidade na qual moro nem é grande). Outra, ganhei dois mil reais numa raspadinha da cidade. Beijei na boca aos dez anos. Fui bicampeão de futebol de salão com o time da escola. Perdi minha querida avó aos treze. Me perdi no mercado público, aos cinco, por quase quarenta minutos. Ah, e já fui pajem do casamento de uma prima minha. Para dezesseis anos, é uma vida interessante, não?
Mas quero falar é daqui onde me encontro no momento. Aqui... aqui é aconchegante e enorme. Tenho a sensação de estar voando, até me apalpo para ter certeza de que não criei asas. Não criei. Aquela cachoeira à esquerda me faz lembrar de uma viagem que fiz com minha avó, aos onze anos. Fomos visitar amigos em um estado vizinho ao nosso. Lá havia cachoeiras cinematográficas e uma brisa que fazia com que os cabelos longos e cacheados de vovó dançassem uma música suave. Como eu adorava aqueles cabelos! Se eu tivesse que descrever aqui, diria: este lugar é um imenso jardim, com animais felizes, flores resplandecentes e pássaros entoando belíssimas cantigas. Não sei quanto tempo já estou aqui, estou sem relógio, sem celular. Do que tenho convicção é de gostar de ficar sentado ao lado dessa cachoeira, ouvindo a água cair, os pássaros cantarem, vendo a beleza das flores e os animais correrem de um lado ao outro. É como se estivesse dentro de uma pintura dessas famosas.
Só estou achando estranho uma coisa: onde estão todos? Por que estou desfrutando de um lugar tão lindo desse sozinho? Nunca estive em camarote de nada, mas desde agora sei que sozinho é totalmente sem graça. Eu deveria estar indo à casa de um colega de aula fazer um trabalho importante para a escola. É em grupo, o resto da galera vai se reunir lá também. Na verdade, eu estava indo para lá, só não estou entendendo como vim parar aqui. Será que peguei um atalho errado e me perdi? Impossível, Alex mora num bairro vizinho ao meu, consigo chegar lá facilmente. Pedalando então, chego de olhos fechados! Além do mais, estudamos juntos desde o jardim de infância.
  O fato é que estou sozinho, num lugar paradisíaco, me sentindo leve e solto, voando sem asas. Nunca me envolvi com drogas, e nem sou pisciano, portanto, sem alucinações. Me belisco a cada minuto, mas também não estou sonhando. Quando escuto lá de longe, vozes. Uma delas até é bastante familiar.

- Não, não. Foi só coincidência de nome mesmo. Ufa! É até parecido, mas graças a Deus, não é ele.
- A senhora tem certeza?
-Absoluta!
- E não há nenhuma peculiaridade que possa identificá-lo prontamente?
- Até tem, mas só em olhar seu rosto, já posso assegurar que não é ele.
- Olha, ele já está aqui faz 24 horas. Encontramos sua carteira de identidade, e anunciaram na rádio a fim de que algum conhecido tomasse conhecimento e nos procurasse.
- A-ham. Bem... ele tem um sinal de nascença em sua parte íntima. Posso checar, para tranquilizar minha consciência e, principalmente, meu coração?
- Vá em frente, senhora.
Ela transportou-se, de imediato, para um lugar indescritível. Seus pés não tocavam o chão. Suas mãos suavam excessivamente, e sua cabeça rodava tal qual um pião. Levaram-na quase desmaiada para a sala ao final do corredor, a fim de que pudesse voltar a si. Mas a taquicardia não deixava.

Eu me encontro sentado, novamente, ao lado da cachoeira. Não tenho qualquer tipo de medo, só curiosidade. Por que estou aqui (sozinho)? Do que as vozes falavam? Ah, vou curtir mais isso daqui. Subitamente, vejo em outra cachoeira, a certa distância, uma pessoa sentada, cabelos cacheados, compridos e soltos, sorrindo tão felizmente a ponto de derrear a cabeça para trás. – Ufa, alguém! Bradei. –Bom demais, alguém para trocar uma ideia. Mas a pessoa não esperou que eu me aproximasse. Simplesmente se foi, sem nem olhar para mim.
Para ser sincero, eu iria curtir muito mais se Façanha estivesse aqui. Isso tudo é tão gigantesco que sozinho e a pé está ficando monótono (sequer consigo me sentir cansado). A propósito, Façanha é minha bicicleta. Somos inseparáveis. Desde que me entendo por gente, pedalar é meu hobby favorito. Pedalar por aí sempre me deixou em paz, seja por fazer me sentir mais bonito (em forma!), seja por me ajudar a tomar decisões. Além de fugir do trânsito. É atividade aeróbica fortalece o meu coração.

Dia dois...
- A senhora pode entrar um pouco. Se quiser, pode conversar com ele. Até recomendamos que o faça. Ele apresenta quadro de traumatismo craniano, devido ao impacto forte no acidente. Boa parte das pessoas que reverteram este panorama teve a quem ouvir. É certo que elas demonstravam pouca ou nenhuma reação a estímulos, mas para a recuperação, foi fundamental. Esta tarde, ele será submetido a uma cirurgia. Vamos ver como reagirá, se reagirá, de tal modo que possa sair do coma.
- Quais são as reais chances?
- Não há regras, senhora. Cada caso é ímpar. Ele pode se recuperar sem sequelas; com sequelas na fala, nos movimentos e/ou na visão e ser, posteriormente, encaminhado a tratamento fonoaudiológico e fisioterapêutico; assim como pode não acordar...
Ela tapou a boca com as mãos, suspendendo ambas as sobrancelhas. Suas rugas se multiplicaram fazendo-lhe aparentar dez anos em apenas dois dias. A ideia de perdê-lo a fazia sair de si.
- E aí, Regina, alguma novidade? O que o médico disse? Regina, Regina, fala alguma coisa!

Ei, Regina é a minha mãe! Escutei uma outra voz conhecida a chamando insistentemente. Mas a voz foi sumindo, terminei por escutá-la de longe. Me senti triste. Aliás, não tenho me sentido mais cem por cento neste lugar. Já estive mais conectado, embora sozinho. Agora, tenho a sensação de que estou apenas perambulando...

Dia três...
O vento abraça os cabelos de Fernando. Uma adrenalina envolve todo o seu corpo. Na companhia de Façanha, costumava fechar os olhos, suspender a cabeça, tirar as mãos do guidão e seguir pedalando em linha reta. De repente, sentiu-se tonto, perdendo o equilíbrio, tal qual aconteceu quando um miniônibus viera ao seu encontro, jogando-o no chão abruptamente. Desta vez, abre os olhos.



Por K.V.França




quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Estamos todos bem e cada um na sua!

Estamos todos bem e cada um na sua!


      
     Assisti a um filme outro dia, meio por acaso zapeando, gostei do título, li as informações, tive a certeza (e não me enganei) de que iria me emocionar. "Estão todos bem" se chama a co-produção Itália - EUA, 2009, direção de Kirk Jones e no elenco Robert De Niro. 
     Não vou contar todo o filme, só traçar rapidamente o fio da história.. Robert De Niro atua de modo brilhante como sempre, na pele de um aposentado, recém viúvo que busca reencontrar os quatro filhos espalhados por diferentes e distantes cidades norte-americanas. O filme mostra as viagens do protagonista ao encontro dos filhos, tem um ritmo lento, reflexivo, recheado de imagens poéticas, diálogos e silêncios. Tem o tom que tanto aprecio no cinema europeu, lamento não ser em italiano, para mim deixaria o filme um tanto mais dramático. 
     O filme acompanha a tal visita surpresa do pai à residência dos filhos, que não parece ser muito bem-vinda por parte das "crianças" como ele se refere à prole adulta. Percebe-se que todos querem demonstrar que estão bem para o pai, preocupado com a felicidade dos filhos, aí o título. Belas imagens em que relembra os filhos pequenos e as conversas sobre a escolha profissional e o futuro de cada um. O pai exigente quer que sejam todos artistas, estimula o talento de cada um. E eles se tornam: músico, artista plástico, bailarina, publicitária.
      O filme dá muito pano pra manga, por isto vou selecionar somente alguns, senão o texto ultrapassará os caracteres e a paciência do prezado leitor. Os discursos do pai com os filhos sobre a escolha profissional permeavam o papel social da profissão a ser escolhida e não a felicidade ao executar determinadas tarefas cotidianas. Claro, os pais sempre querem que os filhos sejam felizes (o que, aliás, o protagonista pergunta a cada filho nesta visita surpresa), o que se esquece é de perceber que a felicidade não é igual pra todo mundo e que uma profissão de maior ou menor prestígio talvez não revele maior ou menor índice de felicidade.
     Outro ponto importante é a preocupação excessiva dos filhos em demonstrar uma vida falsa para o pai, aparentam algo que não são na verdade, tudo para preservar uma imagem criada pelo pai e que desejam manter. Um jogo de inverdade para assegurar uma vida feliz ou pelo menos dentro dos moldes que o pai julga como feliz.
     A verdade é esta, no filme e na vida: nós, na posição de filhos, queremos ser felizes para dizer aos nossos pais que a vida está ótima e que eles não geraram um bando de inúteis, que podem se orgulhar de nossos feitos. Nós, na posição de pais, cobramos uma felicidade idealizada com a profissão que sonhamos e com o futuro traçado por nossos esboços e não pelos de nossos filhos que podem ter um traço muito diferente do considerado ideal e que por vias meio-tortas os podem levar a felicidade.
      Então tá, registrada minha dica de filme e minha ínfima reflexão sobre a felicidade de cada um.
                                                                               Joselma Noal

domingo, 15 de outubro de 2017

Mosaicos


Foto de Alison G. Altmayer

MOSAICOS

Ah, se apenas eu tivesse a coragem de dizer o quanto te amo, eu começaria assim: "sabe? ontem sonhei contigo". E quando soubesses o quanto te amo, me esperarias. Me esperarias como no sonho: lá na frente, no altar, com os pés a balançar teu corpo maduro. Minhas mãos entretidas abraçando o buquê, tuas mãos não acharias onde colocar.

E depois que soubesses o quanto te amo, emocionado olharias nos meus olhos límpidos. Meu vestido branco a deslizar com vagar, espalhando as pétalas vermelhas pelos mosaicos portugueses da nave.


Talvez um dia, quem sabe no intervalo ou no cafezinho, eu te diga baixinho: ontem sonhei contigo. 

Miniconto para o Sarau do Amor, junho 2017

sábado, 7 de outubro de 2017

A fazenda



Na fazenda

Da vitrola sai um som rascante, chiado de 78 rpm. Vivaldi é o compositor, Deutsch Gramophone é a etiqueta. No embalo da cadeira de balanço, ela se enrola numa manta grossa e pede ao filho que coloque mais uma tora de eucalipto na lareira. O vinho de Bento e alguns pinhões fumegantes ajudam a aquecer. Um neto desenha no vidro embaçado e espia o capim congelado do lado de fora. Ali na entrada o cabide está pesado com ponchos e gorros. A conversa gira em torno da compra de sementes, do preço astronômico dos insumos e sobre a cachaça com butiá que ainda não está bem curtida. Da cozinha vem o cheiro da chimia fervendo no tacho de cobre e do pão caseiro aprontando no forno de barro. O calendário do Sagrado Coração diz que é o último dia, mas o frio parece querer ficar. A nora e os netos menores já subiram, cada qual com sua botija de água quente para aquecer o início da noite na cama gelada.

Na manhã seguinte o sol nasce levantando fumaça de geada dos campos. Até o meio da manhã uma cerração leve e depois o céu azul e um pouco de vento. Os álamos margeando o caminho até a porteira já estão brotados. As dunas da beira da praia floriram de amarelo, margaridas em profusão. As borboletas que até ontem eram meros casulos, hoje esvoaçam seu colorido. Dona Maria Leovegilda calça seus tamancos e vai alimentar as galinhas, suas queridinhas. Nem olha para a cadeira de balanço. Não lhe peçam galinha ao molho pardo, pois vira fera. O frio diminuiu muito mas não se pode dispensar um casaquinho leve, principalmente por causa da artrite. A Bendita, cadela misto de pastor com ovelheiro, deu cria essa noite. São mais oito cuscos para alimentar. Maria chama o neto mais velho e pede que anuncie os cachorrinhos nos vizinhos: serão doados para quem se interessar. O guri, meio contrariado, encilha o baio e se toca pelo campo. Na volta anuncia que pelo menos seis terão casa nova, quando desmamarem, não importa se machos ou fêmeas. Por sua vez ele elege um deles, o mais sapeca, para ser seu. A avó concorda.

Moleque, o cachorro de Felipe cresceu muito nesses quatro meses, e tem paixão por banho. O resto da ninhada foi distribuído, mas com freqüência se encontram todos no açude. Dias quentes e correrias por campos e matos juntam cães e guris na volta d água. Jangadas são improvisadas e grandes competições de natação são realizadas. O paraíso daqueles dias só é perturbado pela mosquitada do entardecer, quando fogueiras de eucalipto e bosta de vaca, seca, servem para espantar os insetos. E a noite chega sempre estrelada e com um coral de grilos. A coruja, moradora do telhado do celeiro, inicia sua faina noturna, mas os guris não percebem pois dormem empedrados depois de tanta atividade.


O caminho até a porteira está atapetado de folhas secas e a caminhada para pegar o ônibus escolar é crocante. Passa cedo o João do Bus, assim apelidado pela irreverência dos guris que reiniciam suas aulas. A escola é longe e nem sempre a professora consegue chegar, as estradas são terríveis e as chuvas de março não ajudam em nada.O João de barro termina sua casa, sempre com a porta protegida do nordeste, vento que predomina na região.D. Maria volta a tricotar pois os guris crescem e o pulôver do ano passado já não serve mais. E tem mantas de pescoço que necessitam uma reforma. O Luizão enche o depósito com lenha e os canos do aquecedor são revisados, a serpentina funcionando bem é vital para o conforto dos próximos meses. Foi tudo muito rápido e um novo ciclo inicia. Desta vez com a cachaça de butiá já bem maturada.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Tia Treva

Tem gente que anda como se quisesse sempre voltar para o ventre, ou nunca ter vindo para esse mundo.
A Tia Treva era assim.
Ela não tinha dentes.  O queixo dela era caído como se os ossos quisessem furar o chão e enterrar a Tia Treva no fundo do barro. Para nunca mais sair. Tinha seios enormes. Largos quadris. Um cabelo volumoso. Negras raízes soltas no ar – cabelos de lua moça. Eram bonitos em liberdade. Mas ela prendia com um fio de arame. Era para ninguém tocar na cabeça dela. Passava o dia todo andando pela Vila do Mar. Comia do lixo. Nunca trocava de roupa. Andava descalça. Pés sujos. Pés de ferida aberta na memória da Vila.  A Vó Dália sempre que a encontrava, pegava em sua mão e a recolhia. Dava banho. Dava comida. Sentava Tia Treva no pasto perto da Figueira. Cantava canções de Oxum para ela. E dos olhos da Tia Treva pequenas cachoeiras em cicatriz se formavam. Cachoeiras mudas. Água envergonhada brotava dos olhos sem luz.  Tia Treva apertava bem os dedos contra a barriga. Enterrava bem o queixo no peito. Escavava a terra com os pés. Depois dormia em comunhão com o tronco da Figueira. Vó Dália espantava todos os meninos que entravam no pátio para perturbar a Tia Treva.
“-Deixem a criatura em paz!” Gritava bem alto a Vó Dália para mostrar autoridade. Parece que a sina desta Criatura é ser perseguida ou maltratada por alguém. Pai do Céu! Pensou a Vó agarrando a guia amarela – proteção de Oxum. “-Misericórdia, Senhora das Águas.” Falou a Vó ao relembrar o passado da Tia Treva.
Quando tinha 13 anos, Tereza era uma das meninas mais bonitas da Vila do Mar. Sempre aparentou mais idade pela exuberância de seu corpo. Despertava a paixão dos meninos da escola da Vila, mas não se importava com nada disso. Gostava de subir em árvore. Andar a cavalo no petiço. Pescar até a noitinha e brincar de noiva do mar com o cabelo cheio de espuma. Num dia desses conheceu um pescador que estava de passagem pela Vila. Aproximando-se da menina, o homem descobriu que o sonho dela era ver de perto um cavalo-marinho. Passaram-se uns dias quando o homem voltou à Vila e procurou por Tereza. Disse que tinha encontrado um cavalo-marinho do tamanho do Petiço. Tereza exultou de alegria. Era um sonho se realizando. E mais: ver um cavalo-marinho gigante. Era sorte. Muita sorte mesmo. Aceitou o convite do pescador para ir ao barco dele. Nem pensou que já estava ficando quase noite. Queria era botar logo os olhos no Gigante do mar. Quando Tereza chegou ao barco não tinha cavalo-marinho. Eram mais quatro homens. Rasgaram sua roupa. Amarraram a Tia Treva pelos pés. Pelas mãos. Deixaram-na de costas com o rosto enterrado no assoalho do barco. Todos os homens violaram barbaramente Tia Treva. Todos juntos. Muitas vezes. E foi dor para sempre. Neste dia, ela deixou de ser Tereza. A moça que gostava de vestido. De cavalo-marinho. Ficou uma semana desaparecida. Quando voltou para a Vila do Mar toda a gente descobriu que ela estava muda. Nunca mais falou. Nunca mais sorriu. A Vó Dália relembrava essa dor e sofria profundamente...

Como sempre acontecia, antes do sol raiar, Tia Treva partia da casa da Vó. Com a mesma roupa suja. E com os mesmos pés de dor sumia na Noite da Vila do Mar.

Marcela Wanglon Richter

domingo, 1 de outubro de 2017

SOLIDÕES


           
     Julieta estende o braço até a mesa de cabeceira e com os olhos ainda fechados tateia o telefone celular preso ao carregador de bateria, sem enxergar direito desliza o dedo sobre a tela, mais 5 minutos de sono. O alarme soa de novo, desta vez os olhos se abrem para as 35 notificações. 4 conversas 27 mensagens no Whatsapp, 3 marcações em posts do Facebook, 2 conversas no Messenger, 2 crushs no Happne uma mensagem nova no Tinder. Bom dia Mundo! 15 minutos depois, atrasada, Julieta levanta correndo, toma um banho rápido, coloca a roupa separada na noite anterior, fecha a mochila e corre até a parada. Meio segundo e o ônibus passa. Senta no antepenúltimo banco, do lado do corredor, coloca o fone de ouvido e repousa com as descobertas da semana disponíveis no Spotify. A velhinha sobe, a criança chora, o homem leva uma bofetada na cara por tocar as pernas nuas da moça e Julieta só abre os olhos na penúltima parada antes da praça, onde salta. Do fone já não sai mais música, mas a voz do chefe, colocando prazo para as tarefas do dia. Atravessa na faixa com o sinal fechado prometendo cumprir o solicitado, se quer escuta os xingamentos do motorista ao desviar seu caminho. Passa na padaria, pega uma empada folhada de palmito e uma coca-cola. Do tchau e do bom dia nem escuta a resposta, segue na ligação. Chega no escritório, tira o fone, bate o ponto, deseja bom dia, e só escuta vozes falando ao telefone. No tempo de ligar o computador responde que lasanha de brócolis é seu prato preferido para o gatinho do Tinder, mesmo sabendo ser quase impossível receber um convite para jantar.  Enquanto elabora o relatório da última inspeção ao frigorífico, combina o encontro anual com as amigas de escola, o jantar na casa da avó no próximo domingo e descobre a traição do namorado da ex melhor amiga. Recebe outro telefonema do chefe, cobrando o relatório cujo prazo é o final do dia. A dor que Julieta vinha sentindo na última semana se intensifica, dói a cabeça, dói o pescoço, doem os braços. Julieta corre contra o tempo, silencia as conversas no Whats, pausa o Tinder e o Happn, suporta o desejo quase incontrolável de verificar as atualizações do Facebook e termina o relatório as 4h da tarde. Já sem o efeito do paracetamol Julieta segue o conselho da mãe e busca o pronto atendimento do plano de saúde. Preocupada, descreve todos os sintomas no Google, preparando-se para a conversa com o médico. Cefaleia, meningite, enxaqueca... Julieta, acompanhada de um taquicardia tem seu número chamado. Tentada entre o médico e a fuga pela porta de saída, baixa a cabeça e segue em direção ao consultório. Após meia hora de perguntas e meias repostas, se percebe sedentária, sem postura, mal hábitos alimentares, poucas horas de sono e distantes alegrias. Depois de algumas quadras caminhadas e muitos pensamentos cruzados tira o telefone da mochila para falar com a mãe, sem ter em conta a hora e a esquina escura, seu telefone é levado pelo rapaz de capuz com a faca escondida no casaco. Julieta não chora, nem sorri, apenas quer chegar em casa. Sobe no ônibus, senta no penúltimo banco, no caminho cede o lugar para a velhinha cheia de sacolas, oferece uma bala para a criança que chora e avisa ao cobrador do senhor mal intencionado com a menina da frente. Salta, caminha três longas quadras, um pingo cai na sua cabeça, não é gota de chuva, olha o céu cheio de estrelas, tantas estrelas como há tempos não vê, e brilham muito. Chega em casa, toma um banho, deita na cama vazia. Sozinha. Sem mensagens, sem notificações, sem crushs... Olha para o lustre do quarto,girando com luzes coloridas. Perde alguns minutos. Desliga a luz e dorme. Sonha como há tempos não fazia.

                                                                                                                 Paula Canabarro